ðÁÂÌÏ ëÏÜÌØÏ. áÌÈÉÍÉË (port) Paulo Coelho. O Alquimista --------------------------------------------------------------- © Copyright Paulo Coelho Paulo Coelho's Home page ? http://www.paulocoelho.com.br/ Origin: http://www.cyberminas.com.br ? http://www.cyberminas.com.br Date: 14 Aug 2003 --------------------------------------------------------------- EdiÚÇo especial da pÂgina www.paulocoelho.com.br , venda proibida PREFâCIO ê importante dizer alguma coisa sobre o fato de O Alquimista ser um livro simbÕlico, diferente de O DiÂrio de um Mago, que foi um trabalho de nÇo-ficÚÇo. Durante onze anos de minha vida estudei Alquimia. A simples idÊia de transformar metais em ouro, ou de descobrir o Elixir da Longa Vida, j era fascinante demais para passar despercebida a qualquer iniciante em Magia. Confesso que o Elixir da Longa Vida me seduzia mais: antes de entender e sentir a presenÚa de Deus, a idÊia de que tudo ia acabar um dia era desesperadora. De maneira que, ao saber da possibilidade de conseguir um lÎquido capaz de prolongar por muitos anos minha existËncia, resolvi dedicar- me de corpo e alma Á sua fabricaÚÇo. Era uma Êpoca de grandes transformaÚÈes sociais - o comeÚo dos anos setenta - e nÇo havia ainda publicaÚÈes sÊrias a respeito de Alquimia. Comecei, como um dos personagens do livro, a gastar o pouco dinheiro que tinha na compra de livros importados, e dedicava muitas horas do meu dia ao estudo da sua simbologia complicada. Procurei duas ou trËs pessoas no Rio de Janeiro que se dedicavam seriamente Á Grande Obra, e elas se recusaram a me receber. Conheci tambÊm muitas outras pessoas que se diziam alquimistas, possuÎam seus laboratÕrios, e prometiam me ensinar os segredos da Arte em troca de verdadeiras fortunas; hoje entendo que elas nada sabiam daquilo que pretendiam ensinar. Mesmo com toda a minha dedicaÚÇo, os resultados eram absolutamente nulos. NÇo acontecia nada do que os manuais de Alquimia afirmavam em sua complicada linguagem. Era um sem-fim de sÎmbolos, de dragÈes, leÈes, sÕis, luas e mercßrios, e eu sempre tinha a impressÇo de estar no caminho errado, porque a linguagem simbÕlica permite uma gigantesca margem de equÎvocos. Em 1973, j desesperado com a ausËncia de progresso, cometi uma suprema irresponsabilidade. Nesta Êpoca eu era contratado pela Secretaria de EducaÚÇo de Mato Grosso para dar aulas de teatro naquele estado, e resolvi utilizar meus alunos em laboratÕrios teatrais que tinham como tema a TÂboa da Esmeralda. Esta atitude, aliada a algumas incursÈes minhas nas Âreas pantanosas da Magia, fizeram com que no ano seguinte eu pudesse experimentar na prÕpria carne a verdade do provÊrbio: "Aqui se faz, aqui se paga". Tudo a minha volta ruiu por completo. Passei os prÕximos seis anos de minha vida numa atitude bastante cÊtica com relaÚÇo a tudo que dissesse respeito Á Ârea mÎstica. Neste exÎlio espiritual, aprendi muitas coisas importantes: que sÕ aceitamos uma verdade quando primeira a negamos do fundo da alma, que nÇo devemos fugir de nosso prÕprio destino, e que a mÇo de Deus Ê infinitamente generosa, apesar de Seu rigor. Em 1981, conheci RAM e o meu Mestre, que iria conduzir-me de volta ao caminho que est traÚado para mim. E enquanto ele me treinava em seus ensinamentos, voltei a estudar Alquimia por minha prÕpria conta. Certa noite, enquanto conversÂvamos depois de uma exaustiva sessÇo de telepatia, perguntei porque a linguagem dos alquimistas era tÇo vaga e tÇo complicada. - Existem trËs tipos de alquimistas - disse meu Mestre. - Aqueles que sÇo vagos porque nÇo sabem o que estÇo falando; aqueles que sÇo vagos porque sabem o que estÇo falando, mas sabem tambÊm que a linguagem da Alquimia Ê uma linguagem dirigida ao coraÚÇo, e nÇo Á razÇo. - E qual o terceiro tipo? - perguntei. - Aqueles que jamais ouviram falar em Alquimia, mas que conseguiram, atravÊs de suas vidas, descobrir a Pedra Filosofal. E com isto, meu Mestre - que pertencia ao segundo tipo - resolveu me dar aulas de Alquimia. Descobri que a linguagem simbÕlica, que tanto me irritava e me desnorteava, era a ßnica maneira de se atingir a Alma do Mundo, ou o que Jung chamou de "inconsciente coletivo". Descobri a Lenda Pessoal, e os Sinais de Deus, verdades que meu raciocÎnio intelectual se recusava a aceitar por causa de sua simplicidade. Descobri que atingir a Grande Obra nÇo Ê tarefa de poucos, mas de todos os seres humanos sobre a face da Terra. ê claro que nem sempre a Grande Obra vem sob a forma de um ovo e de um frasco com lÎquido, mas todos nÕs podemos - sem qualquer sombra de dßvida - mergulhar na Alma do Mundo. Por isso, "O Alquimista" Ê tambÊm um texto simbÕlico. No decorrer de suas pÂginas, alÊm de transmitir tudo o que aprendi a respeito, procuro homenagear grandes escritores que conseguiram atingir a Linguagem Universal: Hemingway, Blake, Borges (que tambÊm utilizou a histÕria persa para um de seus contos), Malba Tahan, entre outros. Para completar este extenso prefÂcio, e ilustrar o que meu Mestre queria dizer com o terceiro tipo de alquimistas, vale a pena recordar uma histÕria que ele mesmo me contou no seu laboratÕrio. Nossa Senhora, com o Menino Jesus em seus braÚos, resolveu descer Á Terra e visitar um mosteiro. Orgulhosos, todos os padres fizeram uma grande fila, e cada um chegava diante da Virgem para prestar sua homenagem. Um declamou belos poemas, outro mostrou suas iluminuras para a BÎblia, um terceiro disse o nome de todos os santos. E assim por diante, monge apÕs monge, homenageou Nossa Senhora e o Menino Jesus. No ßltimo lugar da fila, havia um padre, o mais humilde do convento, que nunca havia aprendido os sÂbios textos da Êpoca. Seus pais eram pessoas simples, que trabalhavam num velho circo das redondezas, e tudo que lhe haviam ensinado era atirar bolas para cima e fazer alguns malabarismos. Quando chegou sua vez, os outros padres quiseram encerrar as homenagens, porque o antigo malabarista nÇo tinha nada de importante para dizer, e podia desmoralizar a imagem do convento. Entretanto, no fundo do seu coraÚÇo, tambÊm ele sentia uma imensa necessidade de dar alguma coisa de si para Jesus e a Virgem. Envergonhado, sentindo o olhar reprovador de seus irmÇos, ele tirou algumas laranjas do bolso e comeÚou a jogÂ-las para cima, fazendo malabarismos, que era a ßnica coisa que sabia fazer. Foi sÕ neste instante que o Menino Jesus sorriu, e comeÚou a bater palmas no colo de Nossa Senhora. E foi para ele que a Virgem estendeu os braÚos, deixando que segurasse um pouco o menino. O AUTOR Para J. Alquimista que conhece e utiliza os segredos da Grande Obra. Indo eles pelo caminho, entraram em um certo povoado. E certa mulher, chamada Marta, hospedou-o na sua casa. Tinha ela uma irmÇ, chamada Maria, que sentou-se aos pÊs do Senhor, e ficou ouvindo seus ensinamentos. Marta agitava-se de um lado para o outro, ocupada em muitos serviÚos. EntÇo aproximou-se de Jesus e disse: - Senhor! NÇo te importas de que eu fique a servir sozinha? Ordena a minha irmÇ que venha ajudar-me! Respondeu-lhe o Senhor: - Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas. "Maria, entretanto, escolheu a melhor parte, e esta nÇo lhe ser tirada." LUCAS, 10; 38-42 PRõLOGO O Alquimista pegou um livro que alguÊm na caravana havia trazido. O volume estava sem capa, mas conseguiu identificar seu autor: Oscar Wilde. Enquanto folheava suas pÂginas, encontrou uma histÕria sobre Narciso. O Alquimista conhecia a lenda de Narciso, um belo rapaz que todos os dias ia contemplar sua prÕpria beleza num lago. Era tÇo fascinado por si mesmo que certo dia caiu dentro do lago e morreu afogado. No lugar onde caiu, nasceu uma flor, que chamaram de narciso. Mas nÇo era assim que Oscar Wilde acabava a histÕria. Ele dizia que quando Narciso morreu, vieram as OrÊiades - deusas do bosque - e viram o lago transformado, de um lago de Âgua doce, num c×ntaro de lÂgrimas salgadas. - Por que vocË chora? - perguntaram as OrÊiades. - Choro por Narciso - disse o lago - Ah, nÇo nos espanta que vocË chore por Narciso - continuaram elas. - Afinal de contas, apesar de todas nÕs sempre corrermos atrÂs dele pelo bosque, vocË era o ßnico que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua beleza. - Mas Narciso era belo? - perguntou o lago. - Quem mais do que vocË poderia saber disso? - responderam, surpresas, as OrÊiades. - Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruÚava todos os dias. O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse: - Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era belo. "Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha prÕpria beleza refletida". "Que bela histÕria", disse o Alquimista. O rapaz chamava-se Santiago. Estava comeÚando a escurecer quando chegou com seu rebanho diante de uma velha igreja abandonada. O teto tinha despencado h muito tempo, e um enorme sicÆmoro havia crescido no local que antes abrigava a sacristia. Resolveu passar a noite ali. Fez com que todas as ovelhas entrassem pela porta em ruÎnas, e entÇo colocou algumas tÂbuas de modo que elas nÇo pudessem fugir durante a noite. NÇo haviam lobos naquela regiÇo, mas certa vez um animal havia escapado durante a noite, e ele gastara todo o dia seguinte procurando a ovelha desgarrada. Forrou o chÇo com seu casaco e deitou-se, usando o livro que acabara de ler como travesseiro. Lembrou-se, antes de dormir, que precisava comeÚar a ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram travesseiros mais confortÂveis durante a noite. Ainda estava escuro quando acordou. Olhou para cima, e viu que as estrelas brilhavam atravÊs do teto semidestruÎdo. "Queria dormir um pouco mais", pensou ele. Tivera o mesmo sonho da semana passada, e outra vez acordara antes do final. Levantou-se e tomou um gole de vinho. Depois pegou o cajado e comeÚou a acordar as ovelhas que ainda dormiam. Ele havia reparado que, assim que acordava, a maior parte dos animais tambÊm comeÚava a despertar. Como se houvesse alguma misteriosa energia unindo sua vida Á vida daquelas ovelhas que h dois anos percorriam com ele a terra, em busca de Âgua e alimento. "Elas j se acostumaram tanto a mim que conhecem meus horÂrios", disse em voz baixa. Refletiu um momento, e pensou que podia ser tambÊm o contrÂrio: ele que havia se acostumado ao horÂrio das ovelhas. Haviam certas ovelhas, porÊm, que demoravam um pouco mais para levantar. O rapaz acordou uma a uma com seu cajado, chamando cada qual pelo seu nome. Sempre acreditara que as ovelhas eram capazes de entender o que ele falava. Por isso costumava Ás vezes ler para elas os trechos de livros que o haviam impressionado, ou falar da solidÇo e da alegria de um pastor no campo, ou comentar sobre as ßltimas novidades que via nas cidades por onde costumava passar. Nos ßltimos dois dias, porÊm, seu assunto tinha sido praticamente um sÕ: a menina, filha do comerciante, que morava na cidade por onde ia chegar daqui a quatro dias. Tinha estado apenas uma vez lÂ, no ano anterior. O comerciante era dono de uma loja de tecidos, e gostava sempre de ver as ovelhas tosquiadas na sua frente, para evitar falsificaÚÈes. Um certo amigo tinha indicado a loja, e o pastor levou l suas ovelhas. "Preciso vender alguma lÇ", disse para o comerciante. A loja do homem estava cheia, e o comerciante pediu que o pastor esperasse atÊ o entardecer. Ele sentou-se na calÚada da loja e tirou um livro do alforje. - NÇo sabia que os pastores sÇo capazes de ler livros - disse uma voz feminina ao seu lado. Era uma moÚa tÎpica da regiÇo de Andaluzia, com seus cabelos negros escorridos, e os olhos que lembravam vagamente os antigos conquistadores mouros. - ê porque as ovelhas ensinam mais que os livros - respondeu o rapaz. Ficaram conversando por mais de duas horas. Ela contou que era filha do comerciante, e falou da vida na aldeia, onde cada dia era igual ao outro. O pastor contou dos campos de Andaluzia, das ßltimas novidades que viu nas cidades onde visitara. Estava contente por nÇo precisar conversar sempre com as ovelhas. - Como aprendeu a ler? - perguntou a moÚa a certa altura. - Como todas as outras pessoas - respondeu o rapaz. - Na escola. - E, se sabe ler, entÇo por que Ê apenas um pastor? O rapaz deu uma desculpa qualquer para nÇo responder aquela pergunta. Ele tinha certeza de que a moÚa jamais entenderia. Continuou a contar suas histÕrias de viagem, e os pequenos olhos mouros abriam-se e fechavam-se de espanto e surpresa. á medida que o tempo foi passando, o rapaz comeÚou a desejar que aquele dia nÇo acabasse nunca, que o pai da moÚa ficasse ocupado por muito tempo e o mandasse esperar por trËs dias. Percebeu que estava sentindo uma coisa que nunca havia sentido antes: vontade de ficar morando numa mesma cidade para sempre. Com a menina de cabelos negros, os dias nunca seriam iguais. Mas o comerciante finalmente chegou e mandou que ele tosquiasse quatro ovelhas. Depois, pagou-lhe o que era devido, e pediu que voltasse no ano seguinte. Agora faltavam apenas quatro dias para chegar de novo Á mesma aldeia. Estava excitado e ao mesmo tempo inseguro: talvez a menina j tivesse esquecido. Por ali passavam muitos pastores para vender lÇ. - NÇo tem import×ncia - disse o rapaz para as suas ovelhas. - Eu tambÊm conheÚo outras meninas em outras cidades. Mas no fundo do seu coraÚÇo, ele sabia que tinha import×ncia. E que tanto os pastores, como os marinheiros, como os caixeiro-viajantes, sempre conheciam uma cidade onde havia alguÊm capaz de fazer com que esquecessem a alegria de viajar solto pelo mundo. O dia comeÚou a raiar e o pastor colocou as ovelhas seguindo em direÚÇo ao sol. "Elas nunca precisam tomar uma decisÇo", pensou ele. "Talvez por isso fiquem sempre juntos de mim". A ßnica necessidade que as ovelhas sentiam era de Âgua e de alimento. Enquanto o rapaz conhecesse os melhores pastos em Andaluzia, elas seriam sempre suas amigas. Mesmo que os dias fossem todos iguais, com longas horas se arrastando entre o nascer e o pÆr-do-sol; mesmo que elas jamais tivessem lido um sÕ livro em suas curtas vidas, e nÇo conhecessem a lÎngua dos homens que contavam as novidades nas aldeias. Elas estavam contentes com Âgua e alimento, e isto bastava. Em troca, ofereciam generosamente sua lÇ, sua companhia, e - de vez em quando - sua carne. "Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matar uma por uma, elas sÕ iam perceber depois que quase todo o rebanho tivesse sido exterminado", pensou o rapaz. "Porque confiam em mim, e se esqueceram de confiar nos seus prÕprios instintos. SÕ porque as conduzo ao alimento e Á comida". O rapaz comeÚou a estranhar seus prÕprios pensamentos. Talvez a igreja, com aquele sicÆmoro crescendo dentro, fosse mal-assombrada. Tinha feito com que sonhasse um mesmo sonho pela segunda vez, e estava lhe dando uma sensaÚÇo de raiva contra suas companheiras, sempre tÇo fiÊis. Bebeu um pouco de vinho que havia sobrado do jantar na noite anterior, e apertou contra o corpo o seu casaco. Ele sabia que daqui a algumas horas, com o sol a pino, o calor seria tÇo forte que nÇo ia poder conduzir as ovelhas pelo campo. Era a hora que toda a Espanha dormia no verÇo. O calor durava atÊ a noite, e durante todo este tempo ele tinha que ficar carregando o casaco. Entretanto, quando pensava em reclamar do peso, sempre lembrava que por causa dele nÇo havia sentido frio de manhÇ. "Temos que estar sempre preparados para as surpresas do tempo", pensava entÇo ele, e sentia-se grato pelo peso do casaco. O casaco tinha um motivo, e o rapaz tambÊm. Em dois anos pelas planÎcies de Andaluzia ele j sabia de cor todas as cidades da regiÇo, e esta era a grande razÇo de sua vida; viajar. Estava planejando explicar desta vez Á menina porque um simples pastor sabe ler: havia estado atÊ os dezesseis anos num seminÂrio. Seus pais queriam que ele fosse padre, e motivo de orgulho para uma simples famÎlia camponesa, que trabalhava apenas para comida e Âgua, como suas ovelhas. Estudou latim, espanhol, e teologia. Mas desde crianÚa sonhava em conhecer o mundo, e isto era muito mais importante do que conhecer Deus ou os pecados dos homens. Certa tarde, ao visitar a famÎlia, havia tomado coragem e dito para seu pai que nÇo queria ser padre. Queria viajar. - Homens de todo o mundo j passaram por esta aldeia, filho - disse o pai. - VËm em busca de coisas novas, mas continuam as mesmas pessoas. VÇo atÊ o morro conhecer o castelo e acham que o passado era melhor que o presente. TËm cabelos louros ou pele escura, mas sÇo iguais aos homens de nossa aldeia. - Mas nÇo conheÚo os castelos das terras de onde eles vËm - retrucou o rapaz. - Estes homens, quando conhecem nossos campos e nossas mulheres, dizem que gostariam de viver para sempre aqui - continuou o pai. - Quero conhecer as mulheres e as terras de onde eles vieram - disse o rapaz. - Porque eles nunca ficam por aqui. - Os homens trazem a bolsa cheia de dinheiro - disse mais uma vez o pai. - Entre nÕs, sÕ os pastores viajam. - EntÇo serei pastor. O pai nÇo disse mais nada. No dia seguinte deu-lhe uma bolsa com trËs antigas moedas de ouro espanholas. - Achei certo dia no campo. Iam ser da Igreja, como seu dote. Compre seu rebanho e corra o mundo atÊ aprender que nosso castelo Ê o mais importante, e nossas mulheres sÇo as mais belas. E o abenÚoou. Nos olhos do pai ele leu tambÊm a vontade de correr o mundo. Uma vontade que ainda vivia, apesar das dezenas de anos que ele a tentou sepultar com Âgua, comida, e o mesmo lugar para dormir toda noite. O horizonte se tingiu de vermelho, e depois apareceu o sol. O rapaz lembrou-se da conversa com o pai e sentiu-se alegre; tinha j conhecido muitos castelos e muitas mulheres (mas nenhuma igual Áquela que o esperava em dois dias). Tinha um casaco, um livro que podia trocar por outro, e um rebanho de ovelhas. O mais importante, entretanto, Ê que todo dia realizava o grande sonho de sua vida; viajar. Quando cansasse dos campos de Andaluzia, podia vender suas ovelhas e tornar-se marinheiro. Quando cansasse do mar, teria conhecido muitas cidades, muitas mulheres, muitas oportunidades de ser feliz. "NÇo sei como buscam Deus no seminÂrio", pensou, enquanto olhava o sol que nascia. Sempre que possÎvel, buscava um caminho diferente para andar. Nunca havia estado naquela igreja antes, apesar de haver passado tantas vezes por ali. O mundo era grande e inesgotÂvel, e se ele deixasse que as ovelhas o guiassem apenas um pouquinho, ia terminar descobrindo mais coisas interessantes. "O problema Ê que elas nÇo se dÇo conta de que estÇo fazendo caminhos novos cada dia. NÇo percebem que os pastos mudaram, que as estaÚÈes sÇo diferentes - porque estÇo apenas ocupadas com Âgua e comida." "Talvez seja assim com todos nÕs" - pensou o pastor. "Mesmo comigo, que nÇo penso em outras mulheres desde que conheci a filha do comerciante". Olhou o cÊu, e pelos seus cÂlculos estaria antes do almoÚo em Tarifa. L poderia trocar seu livro por um volume mais grosso, encher a garrafa de vinho, e fazer a barba e o cabelo; tinha que estar pronto para encontrar a menina, e nÇo queria pensar na possibilidade de outro pastor ter chegado antes dele, com mais ovelhas, para pedir sua mÇo. "ê justamente a possibilidade de realizar um sonho que torna a vida interessante", refletiu enquanto olhava novamente o cÊu e apressava o passo. Tinha acabado de se lembrar que em Tarifa morava uma velha capaz de interpretar sonhos. E ele tinha tido um sonho repetido aquela noite. A velha conduziu o rapaz atÊ um quarto no fundo da casa, separado da sala por uma cortina feita de tiras de plÂstico colorido. L dentro tinha uma mesa, uma imagem do Sagrado CoraÚÇo de Jesus, e duas cadeiras. A velha sentou-se e pediu que ele fizesse o mesmo. Depois segurou as duas mÇos do rapaz e rezou baixo. Parecia uma reza cigana. O rapaz j havia encontrado muitos ciganos pelo caminho; eles viajavam e entretanto nÇo cuidavam de ovelhas. As pessoas diziam que a vida de um cigano era sempre enganar aos outros. Diziam tambÊm que eles tinham pacto com demÆnios, e que raptavam crianÚas para servirem de escravas em seus misteriosos acampamentos. Quando era pequeno, o rapaz sempre tinha morrido de medo de ser raptado pelos ciganos, e este temor antigo voltou enquanto a velha segurava suas mÇos. "Mas existe a imagem do Sagrado CoraÚÇo de Jesus", pensou ele, procurando ficar mais calmo. NÇo queria que sua mÇo comeÚasse a tremer e a velha percebesse seu medo . Rezou um pai-nosso em silËncio. - Que interessante - disse a velha, sem tirar os olhos da mÇo do rapaz. E voltou a ficar quieta. O rapaz estava ficando nervoso. Suas mÇos comeÚaram involuntariamente a tremer, e a velha percebeu. Ele puxou as mÇos rapidamente. - NÇo vim aqui para ler as mÇos - disse, j arrependido de ter entrado naquela casa. Pensou por um momento que era melhor pagar a consulta e ir-se embora sem saber de nada. Estava dando import×ncia demais a um sonho repetido. - VocË veio saber de sonhos - respondeu a velha. - E os sonhos sÇo a linguagem de Deus. Quando ele fala a linguagem do mundo, eu posso interpretar. Mas se ele falar a linguagem de sua alma, sÕ vocË pode entender. E vou cobrar a consulta de qualquer maneira. Mais um truque, pensou o rapaz. Entretanto, resolveu arriscar. Um pastor corre sempre o risco dos lobos ou da seca, e isto Ê que faz a profissÇo de pastor mais excitante. - Tive o mesmo sonho duas vezes seguidas - disse. - Sonhei que estava num pasto com minhas ovelhas quando aparecia uma crianÚa, e comeÚava a brincar com os animais. NÇo gosto que mexam nas minhas ovelhas, elas ficam com medo de estranhos. Mas as crianÚas sempre conseguem mexer com os animais sem que eles se assustem. NÇo sei porquË. NÇo sei como os animais sabem a idade dos seres humanos. - Volte para seu sonho - disse a velha. - Tenho uma panela no fogo. AlÊm disso vocË tem pouco dinheiro e nÇo pode tomar todo o meu tempo. - A crianÚa continuava a brincar com as ovelhas por algum tempo - continuou o rapaz, um pouco constrangido. - E de repente, me pegava pelas mÇos e me levava atÊ as Pir×mides do Egito. O rapaz esperou um pouco para ver se a velha sabia o que eram as Pir×mides do Egito. Mas a velha continuou quieta. - EntÇo, nas Pir×mides do Egito, - ele falou as trËs ßltimas palavras lentamente, para que a velha pudesse entender bem - a crianÚa me dizia: "se vocË vier atÊ aqui, vai encontrar um tesouro escondido". E quando ela foi me mostrar o local exato, eu acordei. Nas duas vezes. A velha continuou em silËncio por algum tempo. Depois tornou a pegar as mÇos do rapaz e estudÂ-las atentamente. - NÇo vou lhe cobrar nada agora - disse a velha. Mas quero um dÊcimo do tesouro, se vocË encontrÂ-lo. O rapaz riu. De felicidade. EntÇo iria economizar o pouco dinheiro que tinha, por causa de um sonho que falava em tesouros escondidos! A velha devia ser mesmo uma cigana - os ciganos sÇo burros. - EntÇo interprete o sonho - pediu o rapaz. - Antes jure. Jure que vocË vai me dar a dÊcima parte do seu tesouro em troca do que eu lhe disser. O rapaz jurou. A velha pediu para que ele repetisse o juramento olhando para a imagem do Sagrado CoraÚÇo de Jesus. - ê um sonho da Linguagem do Mundo - disse ela. - Posso interpretÂ-lo, e Ê uma interpretaÚÇo muito difÎcil. Por isso acho que mereÚo minha parte no seu achado. "E a interpretaÚÇo Ê esta: vocË deve ir atÊ as Pir×mides do Egito. Nunca ouvi falar delas, mas se foi uma crianÚa que lhe mostrou, Ê porque existem. L vocË encontrar um tesouro que lhe far rico". O rapaz ficou surpreso, e depois irritado. NÇo precisava ter procurado a velha para isto. Finalmente lembrou-se de que nÇo estava pagando nada. - Para isto eu nÇo precisava perder meu tempo - disse. - Por isso lhe falei que seu sonho era difÎcil. As coisas simples sÇo as mais extraordinÂrias, e sÕ os sÂbios conseguem vË-las. J que nÇo sou uma sÂbia, tenho que conhecer outras artes, como a leitura de mÇos. - E como eu vou chegar atÊ o Egito? - Eu sÕ interpreto sonhos. NÇo sei transformÂ-los em realidade. Por isso tenho que viver do que minhas filhas me dÇo. - E se eu nÇo chegar atÊ o Egito? - Eu fico sem pagamento. NÇo ser a primeira vez. E a velha nÇo disse mais nada. Pediu para que o rapaz saÎsse, pois j tinha perdido muito tempo com ele. O rapaz saiu decepcionado e decidido a nunca mais acreditar em sonhos. Lembrou-se de que tinha vÂrias providËncias a tomar: foi ao armazÊm arranjar alguma comida, trocou seu livro por um livro mais grosso, e sentou-se num banco da praÚa para saborear o vinho novo que havia comprado. Era um dia quente, e o vinho, por um destes mistÊrios insondÂveis, conseguia resfriar um pouco seu corpo. As ovelhas estavam na entrada da cidade, no estÂbulo de um novo amigo seu. Conhecia muita gente por aquelas bandas - e por isso gostava de viajar. A gente sempre acaba fazendo amigos novos, e nÇo precisa ficar com eles dia apÕs dia. Quando a gente vË sempre as mesmas pessoas - e isto acontecia no seminÂrio - terminamos fazendo com que elas passem a fazer parte de nossas vidas. E como elas fazem parte de nossas vidas, passam tambÊm a querer modificar nossas vidas. Se a gente nÇo for como elas esperam ficar, chateadas. Porque todas as pessoas tem a noÚÇo exata de como devemos viver nossa vida. E nunca tËm noÚÇo de como devem viver as suas prÕprias vidas. Como a mulher dos sonhos, que nÇo sabia transformÂ-los em realidade. Resolveu esperar o sol descer um pouco, antes de seguir com suas ovelhas em direÚÇo ao campo. Daqui a trËs dias iria estar com a filha do comerciante. ComeÚou a ler o livro que tinha conseguido com o padre de Tarifa. Era um livro grosso, que falava de um enterro logo na primeira pÂgina. AlÊm disso, o nome dos personagens eram complicadÎssimos. Se algum dia escrevesse um livro, pensou ele, ia colocar um personagem aparecendo de cada vez, para que os leitores nÇo tivessem que ficar decorando nomes. Quando conseguiu concentrar-se um pouco na leitura, - e era boa, porque falava de um enterro na neve, o que lhe transmitia uma sensaÚÇo de frio debaixo daquele imenso sol - um velho sentou-se ao seu lado e comeÚou a puxar conversa. - O que eles estÇo fazendo? - perguntou o velho, apontando para as pessoas da praÚa. - Trabalhando - respondeu o rapaz, secamente, e voltou a fingir que estava concentrado na leitura. Na verdade, estava pensando em tosquiar as ovelhas na frente da filha do comerciante, para ela atestar como ele era capaz de fazer coisas interessantes. J havia imaginado esta cena uma porÚÇo de vezes; em todas elas, a menina ficava deslumbrada quando ele comeÚava a lhe explicar que as ovelhas devem ser tosquiadas de trÂs para frente. TambÊm tentava se lembrar de algumas boas histÕrias para contar a ela enquanto tosquiava as ovelhas. A maior parte ele tinha lido nos livros, mas iria contar como se tivesse vivido pessoalmente. Ela nunca ia saber a diferenÚa, porque nÇo sabia ler livros. O velho, entretanto, insistiu. Falou que estava cansado, com sede, e pediu um gole de vinho ao rapaz. O rapaz ofereceu sua garrafa; talvez o velho ficasse quieto. Mas o velho queria conversar de qualquer maneira. Perguntou que livro o rapaz estava lendo. Ele pensou em ser rude e mudar de banco, mas seu pai havia lhe ensinado o respeito pelos mais velhos. EntÇo estendeu o livro para o velho, por duas razÈes: a primeira Ê que nÇo sabia pronunciar o tÎtulo. E a segunda era que, se o velho nÇo soubesse ler, ia ele mesmo mudar de banco para nÇo sentir-se humilhado. - Humm... - disse o velho, olhando o volume por todos os lados, como se fosse um objeto estranho. - ê um livro importante, mas Ê muito chato. O rapaz ficou surpreso. O velho tambÊm lia, e j lera aquele livro. E se o livro era chato como ele dizia, ainda dava tempo de trocar por outro. - ê um livro que fala o que quase todos os livros falam - continuou o velho. - Da incapacidade que as pessoas tËm de escolher seu prÕprio destino. E termina fazendo com que todo mundo acredite na maior mentira do mundo. - Qual Ê a maior mentira do mundo? - indagou surpreso o rapaz. - ê esta: em determinado momento de nossa existËncia, perdemos o controle de nossas vidas, e ela passa a ser governada pelo destino. Esta Ê a maior mentira do mundo. - Comigo nÇo aconteceu isto - disse o rapaz. - Queriam que eu fosse padre, e eu resolvi ser pastor. - Assim Ê melhor - disse o velho. - Porque vocË gosta de viajar. "Ele adivinhou meu pensamento", refletiu o rapaz. O velho, entretanto, folheava o livro grosso, sem a menor intenÚÇo de devolvË-lo. O rapaz notou que ele vestia uma roupa estranha; parecia um Ârabe, o que nÇo era raro naquela regiÇo. A âfrica ficava a apenas algumas horas da Tarifa; e era sÕ cruzar o pequeno estreito num barco. Muitas vezes apareciam Ârabes na cidade, fazendo compras e rezando oraÚÈes estranhas vÂrias vezes por dia. - De onde Ê o senhor? - perguntou. - De muitas partes. - NinguÊm pode ser de muitas partes - o rapaz falou. - Eu sou um pastor e estou em muitas partes, mas sou de um ßnico lugar, de uma cidade perto de um castelo antigo. Ali foi onde nasci. - EntÇo podemos dizer que eu nasci em SalÊm. - O rapaz nÇo sabia onde era SalÊm, mas nÇo quis perguntar para nÇo sentir- se humilhado com a prÕpria ignor×ncia. Ficou mais algum tempo olhando a praÚa. As pessoas iam e vinham, e pareciam muito ocupadas. - Como est SalÊm? - perguntou o rapaz, procurando alguma pista. - Como sempre esteve. Ainda nÇo era uma pista. Mas sabia que SalÊm nÇo estava em Andaluzia. SenÇo, ele j a teria conhecido. - E o que vocË faz em SalÊm? - insistiu. - O que faÚo em SalÊm? - o velho pela primeira vez deu uma gostosa gargalhada. - Ora, eu sou o Rei de SalÊm! As pessoas dizem coisas muito estranhas, pensou o rapaz. ás vezes Ê melhor estar com as ovelhas, que sÇo caladas, e apenas procuram alimento e Âgua. Ou Ê melhor estar com os livros, que contam estÕrias incrÎveis sempre nas horas que a gente quer ouvir. Mas quando a gente fala com pessoas, elas dizem certas coisas e ficamos sem saber como continuar a conversa. - Meu nome Ê Melquisedec - disse o velho. - Quantas ovelhas vocË tem? - O suficiente - respondeu o rapaz. O velho estava querendo saber demais sobre sua vida. - EntÇo estamos diante de um problema. NÇo posso ajudÂ-lo enquanto vocË achar que tem ovelhas suficientes. O rapaz se irritou. NÇo estava pedindo ajuda. O velho Ê que tinha pedido vinho, conversa, e livro. - Me devolva o livro - disse. - Tenho que ir buscar minhas ovelhas e seguir adiante. - Me dË um dÊcimo de suas ovelhas - disse o velho. - E eu lhe ensino como chegar atÊ o tesouro escondido. O rapaz tornou entÇo a lembrar-se do sonho, e de repente tudo ficou claro. A velha nÇo tinha cobrado nada, mas o velho - que era talvez seu marido - ia conseguir arrancar muito mais dinheiro em troca de uma informaÚÇo que nÇo existia. O velho devia ser cigano tambÊm. Antes que o rapaz dissesse qualquer coisa, porÊm, o velho abaixou-se, pegou um graveto, e comeÚou a escrever na areia da praÚa. Quando ele se abaixou, alguma coisa brilhou dentro do seu peito, com tanta intensidade que quase cegou o rapaz. Mas num movimento rÂpido demais para alguÊm de sua idade, tornou a cobrir o brilho com o manto. Os olhos do rapaz voltaram ao normal e ele pode enxergar o que o velho estava escrevendo. Na areia da praÚa principal da pequena cidade, ele leu o nome do seu pai e de sua mÇe. Leu a histÕria de sua vida atÊ aquele momento, as brincadeiras de inf×ncia, as noites frias do seminÂrio. Leu o nome da filha do comerciante, que nÇo sabia. Leu coisas que jamais contara para alguÊm, como o dia em que roubou a arma do seu pai para matar veados, ou sua primeira e solitÂria experiËncia sexual. "Sou o Rei de SalÊm", dissera o velho. - Por que um rei conversa com um pastor? - perguntou o rapaz, envergonhado e admiradÎssimo. - Existem vÂrias razÈes. Mas vamos dizer que a mais importante Ê que vocË tem sido capaz de cumprir sua Lenda Pessoal. O rapaz nÇo sabia o que era Lenda Pessoal. - ê aquilo que vocË sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no comeÚo da juventude, sabem qual Ê sua Lenda Pessoal. "Nesta altura da vida, tudo Ê claro, tudo Ê possÎvel, e elas nÇo tËm medo de sonhar e desejar tudo aquilo que gostariam de ver fazer em suas vidas. Entretanto, Á medida em que o tempo vai passando, uma misteriosa forÚa comeÚa a tentar provar que Ê impossÎvel realizar a Lenda Pessoal. O que o velho estava dizendo nÇo fazia muito sentido para o rapaz. Mas ele queria saber o que eram "forÚas misteriosas"; a filha do comerciante ia ficar boquiaberta com isto. - SÇo as forÚas que parecem ruins, mas na verdade estÇo ensinando a vocË como realizar sua Lenda Pessoal. EstÇo preparando seu espÎrito e sua vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja vocË quem for ou o que faÚa, quando quer com vontade alguma coisa, Ê porque este desejo nasceu na alma do Universo. ê sua missÇo na Terra. - Mesmo que seja apenas viajar? Ou casar com a filha de um comerciante de tecidos? - Ou buscar um tesouro. A Alma do Mundo Ê alimentada pela felicidade das pessoas. Ou pela infelicidade, inveja, cißme. Cumprir sua Lenda Pessoal Ê a ßnica obrigaÚÇo dos homens. Tudo Ê uma coisa sÕ. "E quando vocË quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que vocË realize seu desejo". Durante algum tempo ficaram em silËncio, olhando a praÚa e as pessoas. Foi o velho quem falou primeiro. - Por que vocË cuida de ovelhas? - Porque gosto de viajar. Ele apontou um pipoqueiro, com sua carrocinha vermelha, que estava num canto da praÚa. - Aquele pipoqueiro tambÊm sempre desejou viajar, quando crianÚa. Mas preferiu comprar uma carrocinha de pipoca, juntar dinheiro durante anos. Quando estiver velho, vai passar um mËs na âfrica. Jamais entendeu que a gente sempre tem condiÚÈes para fazer o que sonha. - Devia ter escolhido ser um pastor - pensou em voz alta o rapaz. - Ele pensou nisto - disse o velho. - Mas os pipoqueiros sÇo mais importantes que os pastores. Os pipoqueiros tËm uma casa, enquanto os pastores dormem ao relento. As pessoas preferem casar suas filhas com pipoqueiros do que com pastores. O rapaz sentiu uma pontada no coraÚÇo, pensando na filha do comerciante. Em sua cidade devia haver um pipoqueiro. - Enfim, o que as pessoas pensam sobre pipoqueiros e sobre pastores passa a ser mais importante para elas que a Lenda Pessoal. O velho folheou o livro, e distraiu-se lendo uma pÂgina. O rapaz esperou um pouco, e o interrompeu da mesma maneira como ele o havia interrompido. - Por que vocË fala estas coisas comigo? - Porque vocË tenta viver sua Lenda Pessoal. E est a ponto de desistir dela. - E vocË aparece sempre nestas horas? - Nem sempre desta forma, mas jamais deixei de aparecer. ás vezes apareÚo sob a forma de uma boa saÎda, uma boa idÊia. Outras vezes, num momento crucial, faÚo as coisas ficarem mais fÂceis. E assim por diante; mas a maior parte das pessoas nÇo nota isto. O velho contou que na semana passada ele tinha sido forÚado a aparecer para um garimpeiro sob a forma de uma pedra. O garimpeiro tinha largado tudo para ir em busca de esmeraldas. Durante cinco anos trabalhou num rio, e tinha quebrado 999.999 pedras em busca de uma esmeralda. Neste ponto o garimpeiro pensou em desistir, e sÕ faltava uma pedra - apenas UMA PEDRA - para ele descobrir sua esmeralda. Como ele tinha sido um homem que havia apostado em sua Lenda Pessoal, o velho resolveu interferir. Transformou-se numa pedra que rolou sobre o pÊ do garimpeiro. Este, com a raiva e frustraÚÇo dos cinco anos perdidos, atirou a pedra longe. Mas atirou com tanta forÚa que ela bateu em outra pedra e esta se quebrou, mostrando a mais bela esmeralda do mundo. - As pessoas aprendem muito cedo sua razÇo de viver - disse o velho com uma certa amargura nos olhos. - Talvez seja por isso que elas desistem tÇo cedo tambÊm. Mas assim Ê o mundo. EntÇo o rapaz se lembrou que a conversa havia comeÚado com o tesouro escondido. - Os tesouros sÇo levantados da terra pela torrente de Âgua, e enterrados por estas mesmas enchentes - disse o velho. - Se vocË quiser saber sobre seu tesouro, ter que me ceder um dÊcimo de suas ovelhas. - E nÇo serve um dÊcimo do tesouro? O velho ficou decepcionado. - Se vocË sair prometendo o que ainda nÇo tem, vai perder sua vontade de consegui-lo. O rapaz entÇo contou que tinha prometido um dÊcimo Á cigana. - Os ciganos sÇo espertos - suspirou o velho. - De qualquer maneira Ê bom vocË aprender que tudo na vida tem um preÚo. ê isto que os Guerreiros da Luz tentam ensinar. O velho devolveu o livro ao rapaz. - AmanhÇ, nesta mesma hora, vocË me traz um dÊcimo de suas ovelhas. Eu lhe ensinarei como conseguir o tesouro escondido. Boa tarde. E sumiu numa das esquinas da praÚa. O rapaz tentou ler o livro, mas nÇo conseguiu concentrar-se mais. Estava agitado e tenso, porque sabia que o velho falava a verdade. Foi atÊ o pipoqueiro, comprou um saco de pipocas, enquanto pensava se devia ou nÇo contar a ele o que o velho dissera. "ás vezes Ê melhor deixar as coisas como estÇo", pensou o rapaz, e ficou quieto. Se dissesse algo, o pipoqueiro ia ficar trËs dias pensando em largar tudo, mas estava muito acostumado com sua carrocinha. Ele podia evitar este sofrimento ao pipoqueiro. ComeÚou a andar sem rumo pela cidade, e foi atÊ o porto. Havia um pequeno prÊdio, e no prÊdio havia uma janelinha onde as pessoas compravam passagens. O Egito estava na âfrica. - Quer alguma coisa? - perguntou o sujeito no guichË. - Talvez amanhÇ - disse o rapaz se afastando. Se vendesse apenas uma ovelha podia chegar atÊ o outro lado do estreito. Era uma idÊia que o apavorava. - Mais um sonhador - disse o sujeito do guichË ao seu assistente, enquanto o rapaz se afastava. - NÇo tem dinheiro para viajar. Quando estava no guichË, o rapaz havia se lembrado de suas ovelhas, e sentiu medo de voltar para junto delas. Dois anos haviam passado aprendendo tudo sobre a arte do pastoreio; sabia tosquiar, cuidar das ovelhas grÂvidas, proteger os animais contra os lobos. Conhecia todos os campos e pastos de Andaluzia. Conhecia o preÚo justo de comprar e vender cada um dos seus animais. Resolveu voltar atÊ o estÂbulo de seu amigo pelo caminho mais longo. A cidade tambÊm tinha um castelo, e ele resolveu subir a rampa de pedra e sentar-se numa de suas muradas. L de cima ele podia ver a âfrica. AlguÊm certa vez havia lhe explicado que por ali chegaram os mouros, que ocuparam durante tantos anos quase toda a Espanha. O rapaz detestava os mouros. Eles Ê que tinham trazido os ciganos. De l podia ver tambÊm quase toda a cidade, inclusive a praÚa onde havia conversado com o velho. "Maldita hora em que encontrei este velho", pensou ele. Tinha ido apenas buscar uma mulher que interpretasse sonhos. Nem a mulher nem o velho davam qualquer import×ncia para o fato de que ele era um pastor. Eram pessoas solitÂrias, que j nÇo acreditavam mais na vida, e nÇo entendiam que os pastores terminam apegados Ás suas ovelhas. Ele conhecia em detalhes cada uma delas: sabia qual mancava, qual iria dar cria daqui a dois meses, e quais eram as mais preguiÚosas. Sabia tambÊm como tosquiÂ-las, e como matÂ-las. Se resolvesse partir, elas sofreriam. Um vento comeÚou a soprar. Ele conhecia aquele vento: as pessoas o chamavam de Levante, porque com este vento chegaram tambÊm as hordas de infiÊis. AtÊ conhecer Tarifa, nunca havia pensado que a âfrica estava tÇo perto. Isto era um grande perigo: os mouros poderiam invadir novamente. O Levante comeÚou a soprar mais forte. "Estou entre as ovelhas e o tesouro", pensava o rapaz. Tinha que decidir-se entre alguma coisa que havia se acostumado e alguma coisa que gostaria de ter. Havia tambÊm a filha do comerciante, mas ela nÇo era tÇo importante como as ovelhas, porque nÇo dependia dele. Talvez sequer se lembrasse dele. Teve certeza de que, se nÇo aparecesse daqui a dois dias, a menina nÇo iria notar: para ela todos os dias eram iguais, e quando todos os dias ficam iguais, Ê porque as pessoas deixaram de perceber as coisas boas que aparecem em suas vidas sempre que o sol cruza o cÊu. "Eu larguei meu pai, minha mÇe, e o castelo da minha cidade. Eles se acostumaram e eu me acostumei. As ovelhas tambÊm vÇo se acostumar com a minha falta", pensou o rapaz. De l de cima ele olhou a praÚa. O pipoqueiro continuava vendendo suas pipocas. Um jovem casal sentou-se no banco onde ele havia conversado com o velho, e deram um longo beijo. "O pipoqueiro", disse para si mesmo, sem completar a frase. Porque o Levante havia comeÚado a soprar com mais forÚa, e ele ficou sentindo o vento no rosto. Ele trazia os mouros, Ê verdade, mas tambÊm trazia o cheiro do deserto e das mulheres cobertas com vÊu. Trazia o suor e os sonhos dos homens que um dia haviam partido em busca do desconhecido, de ouro, de aventuras - e de pir×mides. O rapaz comeÚou a invejar a liberdade do vento, e percebeu que poderia ser como ele. Nada o impedia, exceto ele prÕprio. As ovelhas, a filha do comerciante, os campos de Andaluzia, eram apenas os passos de sua Lenda Pessoal. No dia seguinte o rapaz encontrou-se com o velho ao meio-dia. Trazia seis ovelhas consigo. - Estou surpreso - disse ele. - Meu amigo comprou imediatamente as ovelhas. Disse que a vida inteira havia sonhado em ser pastor, e aquilo era um bom sinal. - ê sempre assim - disse o velho. - Chamamos de PrincÎpio FavorÂvel. Se vocË for jogar baralho pela primeira vez, com quase toda certeza ir ganhar. Sorte de principiante. - E por que? - Porque a vida quer que vocË viva sua Lenda Pessoal. Depois comeÚou a examinar as seis ovelhas, e descobriu que uma mancava. O rapaz explicou que isto nÇo tinha import×ncia, porque ela era a mais inteligente, e produzia bastante lÇ. - Onde est o tesouro? - perguntou. - O tesouro est no Egito, perto das Pir×mides. O rapaz levou um susto. A velha tinha dito a mesma coisa, mas nÇo tinha cobrado nada. - Para chegar atÊ ele, vocË ter que seguir os sinais. Deus escreveu no mundo o caminho que cada homem deve seguir. ê sÕ ler o que ele escreveu para vocË. Antes que o rapaz dissesse alguma coisa, uma mariposa comeÚou a esvoaÚar entre ele e o velho. Lembrou-se de seu avÆ; quando ele era crianÚa, seu avÆ lhe dissera que as mariposas eram sinal de boa sorte. Como os grilos, as esperanÚas, as lagartixas, e os trevos de quatro folhas. - Isto - disse o velho, que era capaz de ler seus pensamentos. - Exatamente como seu avÆ lhe ensinou. Estes sÇo os sinais. Depois o velho abriu o manto que lhe cobria o peito. O rapaz ficou impressionado com o que viu, e lembrou-se do brilho que havia notado no dia anterior. O velho tinha um peitoral de ouro maciÚo, coberto de pedras preciosas. Era realmente um rei. Devia estar disfarÚado assim para fugir dos salteadores. - Tome - disse o velho, tirando uma pedra branca e uma pedra negra que estavam presas no centro do peitoral de ouro. - Chamam-se Urim e Tumim. A preta quer dizer "sim", a branca quer dizer "nÇo". Quando vocË nÇo conseguir enxergar os sinais, elas servem. FaÚa sempre uma pergunta objetiva. "Mas de uma maneira geral, procure tomar suas decisÈes. O tesouro est nas Pir×mides e isto vocË j sabia; mas teve que pagar seis ovelhas porque eu lhe ajudei a tomar uma decisÇo". O rapaz guardou as pedras no alforje . Daqui por diante, tomaria suas prÕprias decisÈes. - NÇo se esqueÚa de que tudo Ê uma coisa sÕ. NÇo se esqueÚa da linguagem dos sinais. E, sobretudo, nÇo se esqueÚa de ir atÊ o fim de sua Lenda Pessoal. "Antes, porÊm, gostaria de contar-lhe uma pequena histÕria. "Certo mercador enviou seu filho para aprender o Segredo da Felicidade com o mais sÂbio de todos os homens. O rapaz andou durante quarenta dias pelo deserto, atÊ chegar a um belo castelo, no alto de uma montanha. L vivia o SÂbio que o rapaz buscava. "Ao invÊs de encontrar um homem santo, porÊm, o nosso herÕi entrou numa sala e viu uma atividade imensa; mercadores entravam e saÎam, pessoas conversavam pelos cantos, uma pequena orquestra tocava melodias suaves, e havia uma farta mesa com os mais deliciosos pratos daquela regiÇo do mundo. O SÂbio conversava com todos, e o rapaz teve que esperar duas horas atÊ chegar sua vez de ser atendido. "O SÂbio ouviu atentamente o motivo da visita do rapaz, mas disse-lhe que naquele momento nÇo tinha tempo de explicar-lhe o Segredo da Felicidade. Sugeriu que o rapaz desse um passeio por seu palÂcio, e voltasse daqui a duas horas. "- Entretanto, quero lhe pedir um favor - completou o SÂbio, entregando ao rapaz uma colher de chÂ, onde pingou duas gotas de Õleo. - Enquanto vocË estiver caminhando, carregue esta colher sem deixar que o Õleo seja derramado. "O rapaz comeÚou a subir e descer as escadarias do palÂcio, mantendo sempre os olhos fixos na colher. Ao final de duas horas, retornou Á presenÚa do SÂbio. "- EntÇo - perguntou o SÂbio - vocË viu as tapeÚarias da PÊrsia que estÇo na minha sala de jantar? Viu o jardim que o Mestre dos Jardineiros demorou dez anos para criar? Reparou nos belos pergaminhos de minha biblioteca? "O rapaz, envergonhado, confessou que nÇo havia visto nada. Sua ßnica preocupaÚÇo era nÇo derramar as gotas de Õleo que o SÂbio lhe havia confiado. "- Pois entÇo volte e conheÚa as maravilhas do meu mundo - disse o SÂbio. - VocË nÇo pode confiar num homem se nÇo conhece sua casa. "J mais tranqØilo, o rapaz pegou a colher e voltou a passear pelo palÂcio, desta vez reparando em todas as obras de arte que pendiam do teto e das paredes. Viu os jardins, as montanhas ao redor, a delicadeza das flores, o requinte com que cada obra de arte estava colocada em seu lugar. De volta Á presenÚa do SÂbio, relatou pormenorizadamente tudo que havia visto. "- Mas onde estÇo as duas gotas de Õleo que lhe confiei? - perguntou o SÂbio. "Olhando para a colher, o rapaz percebeu que as havia derramado. "- Pois este Ê o ßnico conselho que eu tenho para lhe dar - disse o mais SÂbio dos SÂbios. - O segredo da felicidade est em olhar todas as maravilhas do mundo, e nunca se esquecer das duas gotas de Õleo na colher". O rapaz ficou em silËncio. Havia compreendido a histÕria do velho rei. Um pastor gosta de viajar, mas jamais esquece suas ovelhas. O velho olhou para o rapaz, e com as duas mÇos espalmadas fez alguns gestos estranhos em sua cabeÚa. Depois, pegou os animais e seguiu seu caminho. No alto da pequena cidade de Tarifa existe um velho forte construÎdo pelos mouros, e quem senta em suas muralhas consegue enxergar uma praÚa, um pipoqueiro, e um pedaÚo da âfrica. Melquisedec, o Rei de SalÊm, sentou-se na murada do forte aquela tarde, e sentiu o vento Levante no rosto. As ovelhas esperneavam ao seu lado, com medo do novo dono, e excitadas com tantas mudanÚas. Tudo que elas queriam era apenas comida e Âgua. Melquisedec olhou o pequeno navio que estava zarpando do porto. Nunca mais tornaria a ver o rapaz, da mesma maneira como jamais tornou a ver AbraÇo, depois de lhe ter cobrado o dÎzimo. Entretanto, esta era a sua obra. Os deuses nÇo devem ter desejos, porque os deuses nÇo tËm Lenda Pessoal. Entretanto, o Rei de SalÊm torceu intimamente para que o rapaz tivesse Ëxito. "Pena que ele vai esquecer logo meu nome", pensou. "Devia ter repetido mais de uma vez. Assim, quando falasse a meu respeito, diria que sou Melquisedec, o Rei de SalÊm." Depois olhou para o cÊu meio arrependido: "sei que Ê vaidade das vaidades, como Tu disseste, Senhor. Mas um velho rei Ás vezes tem que sentir orgulho de si mesmo". "Como Ê estranha a âfrica", pensou o rapaz. Estava sentado numa espÊcie de bar igual a outros bares que ele havia encontrado nas ruelas estreitas da cidade. Algumas pessoas fumavam um cachimbo gigante, que era passado de boca em boca. Em poucas horas havia visto homens de mÇos dadas, mulheres com o rosto coberto, e sacerdotes que subiam em longas torres e comeÚavam a cantar - enquanto todos Á sua volta se ajoelhavam e batiam com a cabeÚa no solo. "Coisa de infiÊis", disse para si mesmo. Quando crianÚa, via sempre na igreja da sua aldeia uma imagem de SÇo Santiago Matamouros em seu cavalo branco, com a espada desembainhada, e figuras como aquelas debaixo de seus pÊs. O rapaz sentia-se mal e terrivelmente sÕ. Os infiÊis tinham um olhar sinistro. AlÊm disso, na pressa de viajar, ele havia se esquecido de um detalhe, um ßnico detalhe, que podia afastÂ-lo do seu tesouro por muito tempo: naquele paÎs todos falavam Ârabe. O dono do bar se aproximou e o rapaz apontou para uma bebida que tinha sido servida em outra mesa. Era um ch amargo. O rapaz preferia beber vinho. Mas nÇo devia preocupar-se com isto agora. Tinha que pensar apenas no seu tesouro, e a maneira de consegui-lo. A venda das ovelhas lhe havia deixado com bastante dinheiro no bolso, e o rapaz sabia que o dinheiro era mÂgico: com ele ninguÊm jamais est sozinho. Daqui a pouco, talvez em alguns dias, estaria junto das Pir×mides. Um velho, com todo aquele ouro no peito, nÇo precisava mentir para ganhar seis ovelhas. O velho lhe havia falado de sinais. Enquanto atravessava o mar, ele havia pensado nos sinais. Sim, sabia do que ele estava falando: durante o tempo em que estivera nos campos de Andaluzia, havia se acostumado a ler na terra e nos cÊus as condiÚÈes do caminho que devia seguir. Aprendera que certo pÂssaro indicava uma cobra por perto, e que determinado arbusto era sinal de Âgua daqui a alguns quilÆmetros. As ovelhas lhe haviam ensinado isto. "Se Deus conduz tÇo bem as ovelhas, tambÊm conduzir o homem", refletiu, e ficou mais tranqØilo. O ch parecia menos amargo. - Quem Ê vocË? - ouviu uma voz em espanhol. O rapaz ficou imensamente aliviado. Estava pensando em sinais e alguÊm tinha aparecido. - Como vocË fala espanhol? - perguntou. O recÊm-chegado era um rapaz vestido Á maneira dos ocidentais, mas a cor de sua pele indicava que devia ser daquela cidade. Tinha mais ou menos sua altura e sua idade. - Quase todo mundo aqui fala espanhol. Estamos h apenas duas horas da Espanha. - Sente-se e peÚa alguma coisa por minha conta - disse o rapaz. - E peÚa um vinho para mim. Detesto este chÂ. - NÇo h vinho no paÎs - disse o recÊm-chegado. - A religiÇo nÇo permite. O rapaz disse entÇo que precisava chegar atÊ as Pir×mides. Quase ia falando do tesouro, mas resolveu ficar calado. SenÇo era bem capaz do Ârabe querer uma parte para levÂ-lo atÊ lÂ. Lembrou-se do que o velho lhe dissera a respeito de ofertas. - Gostaria que me levasse atÊ lÂ, se puder. Posso lhe pagar como guia. - VocË tem idÊia de como chegar atÊ lÂ? O rapaz reparou que o dono do bar estava por perto, ouvindo atentamente a conversa. Sentia-se incomodado com a presenÚa dele. Mas tinha encontrado um guia, e nÇo ia perder esta oportunidade. - VocË tem que atravessar todo o deserto de Saara - disse o recÊm-chegado. - E para isto precisamos de dinheiro. Quero saber se vocË tem dinheiro suficiente. O rapaz achou estranha a pergunta. Mas confiava no velho, e o velho lhe falara que quando se quer uma coisa, o universo sempre conspira a favor. Tirou seu dinheiro do bolso e mostrou ao recÊm-chegado. O dono do bar aproximou-se e olhou tambÊm. Os dois trocaram algumas palavras em Ârabe. O dono do bar parecia irritado. - Vamos embora - disse o recÊm-chegado. - Ele nÇo quer que continuemos aqui. O rapaz ficou aliviado. Levantou-se para pagar a conta, mas o dono o agarrou e comeÚou a falar sem parar. O rapaz era forte, mas estava numa terra estrangeira. Foi seu novo amigo que empurrou o dono para o lado e puxou o rapaz para fora. - Ele queria seu dinheiro - disse. - T×nger nÇo Ê igual ao resto da âfrica. Estamos num porto e os portos tËm sempre muito ladrÈes. Ele podia confiar em seu novo amigo. Tinha lhe ajudado numa situaÚÇo crÎtica. Tirou o dinheiro do bolso e contou. - Podemos chegar amanhÇ nas Pir×mides - disse o outro, pegando o dinheiro. - Mas preciso comprar dois camelos. SaÎram andando pelas ruas estreitas de T×nger. Em todo canto haviam barracas de coisas para vender. Chegaram enfim no meio de uma grande praÚa, onde funcionava o mercado. Haviam milhares de pessoas discutindo, vendendo, comprando, hortaliÚas misturadas com adagas, tapetes junto com todo tipo de cachimbos. Mas o rapaz nÇo tirava o olho de seu novo amigo. Afinal de contas, ele estava com todo o seu dinheiro nas mÇos. Pensou em pedi-lo de volta, mas achou que seria indelicado. Ele nÇo conhecia o costume das terras estranhas que estava pisando. "Basta vigiÂ-lo", disse para si mesmo. Era mais forte que o outro. De repente, no meio de toda aquela confusÇo, estava a mais bela espada que seus olhos j haviam visto. A bainha era prateada, e o cabo negro, cravejado de pedras. O rapaz prometeu a si mesmo que, quando voltasse do Egito, ia comprar aquela espada. - Pergunte ao dono da barraca quanto custa - disse ele ao amigo. Mas percebeu que tinha ficado dois segundos distraÎdo, olhando a espada. Seu coraÚÇo ficou pequeno, como se o peito tivesse subitamente encolhido. Teve medo de olhar para o lado, porque sabia o que ia encontrar. Os olhos continuaram fixos na bela espada por mais alguns momentos, atÊ que o rapaz tomou coragem e se virou. Em volta dele o mercado, as pessoas indo e vindo, gritando e comprando, os tapetes misturados com avelÇs, as alfaces junto Ás bandejas de cobre, os homens de mÇos dadas pelas ruas, as mulheres de vÊu, o cheiro de comida estranha, e em nenhum lugar, mas em nenhum lugar mesmo, o rosto de seu companheiro. O rapaz ainda quis pensar que haviam se perdido por acaso. Resolveu ficar ali mesmo, esperando que o outro voltasse. Pouco tempo depois um sujeito subiu numa daquelas torres e comeÚou a cantar; todas as pessoas ajoelharam-se no chÇo, bateram com a cabeÚa no solo, e cantaram tambÊm. Depois, como um bando de formigas trabalhadoras, desfizeram as barracas e foram embora. O sol comeÚou a ir embora tambÊm. O rapaz olhou o sol durante muito tempo, atÊ que ele se escondeu atrÂs das casas brancas que davam a volta na praÚa. Lembrou-se que quando aquele sol nascera de manhÇ, ele estava em outro continente, era um pastor, tinha sessenta ovelhas, e um encontro marcado com uma moÚa. De manhÇ ele sabia tudo que iria acontecer enquanto andava pelos campos. Entretanto, agora que o sol se escondia, ele estava num paÎs diferente, um estranho numa terra estranha, onde nem sequer podia entender a lÎngua que falavam. J nÇo era um pastor, e nÇo tinha mais nada na vida, nem mesmo dinheiro para voltar e comeÚar tudo de novo. "Tudo isto entre o nascente e o poente do mesmo sol" - pensou o rapaz. E sentiu pena de si mesmo, porque Ás vezes as coisas mudam na vida no espaÚo de um simples grito, antes que as pessoas possam se acostumar com elas. Tinha vergonha de chorar. Jamais havia chorado na frente de suas prÕprias ovelhas. Entretanto, o mercado estava vazio e ele estava longe da pÂtria. O rapaz chorou. Chorou porque Deus era injusto, e retribuÎa desta maneira Ás pessoas que acreditavam em seus prÕprios sonhos. "Quando eu estava com as ovelhas eu era feliz, e espalhava sempre felicidade Á minha volta. As pessoas me viam chegar e me recebiam bem. "Mas agora estou triste e infeliz. O que farei? Vou ser mais amargo e nÇo vou confiar nas pessoas, porque uma pessoa me traiu. Vou odiar aqueles que encontraram tesouros escondidos, porque eu nÇo encontrei o meu. E vou sempre procurar manter o pouco que tenho, porque sou pequeno demais para abraÚar o mundo". Abriu seu alforje para ver o que tinha l dentro; talvez tivesse sobrado alguma coisa do sanduÎche que havia comido no barco. Mas sÕ encontrou o livro grosso, o casaco, e as duas pedras que o velho lhe dera. Ao olhar as pedras, sentiu uma imensa sensaÚÇo de alÎvio. Tinha trocado seis ovelhas por duas pedras preciosas, saÎdas de um peitoral de ouro. Podia vender as pedras e comprar a passagem de volta. "Agora serei mais esperto", pensou o rapaz, tirando as pedras do alforje para escondË-las dentro do bolso. Ali era um porto, e esta era a ßnica verdade que aquele homem lhe dissera; um porto est sempre cheio de ladrÈes. Agora entendia tambÊm o desespero do dono do bar: estava tentando dizer- lhe para nÇo confiar naquele homem. "Sou como todas as pessoas: vejo o mundo da maneira que desejava que as coisas acontecessem, e nÇo da maneira que as coisas acontecem". Ficou olhando as pedras. Tocou com cuidado cada uma, sentindo a temperatura e a superfÎcie lisa. Elas eram seu tesouro. O simples toque das pedras lhe deu mais tranqØilidade. Elas lhe lembravam do velho. "Quando vocË quer uma coisa, todo o Universo conspira para que possa consegui-la", dissera-lhe o velho. Queria entender como aquilo podia ser verdade. Estava ali num mercado vazio, sem um centavo no bolso, e sem ovelhas para guardar aquela noite. Mas as pedras eram a prova de que tinha encontrado um rei - um rei que sabia a sua histÕria, sabia da arma do seu pai e da sua primeira experiËncia sexual. "As pedras servem para adivinhaÚÇo. Chamam-se Urim e Tumim". O rapaz colocou de novo as pedras dentro do saco e resolveu experimentar. O velho havia falado que fizesse perguntas claras, porque as pedras sÕ serviam para quem sabe o que quer. O rapaz entÇo perguntou se a bËnÚÇo do velho continuava ainda com ele. Tirou uma das pedras. Era "sim". "Vou encontrar meu tesouro?" perguntou o rapaz. Enfiou a mÇo no alforje e ia pegando uma das pedras, quando ambas escorregaram por buraco no tecido. O rapaz nunca havia percebido que seu alforje estava rasgado. Abaixou-se para pegar o Urim e o Tumim, e colocÂ-los de novo dentro do saco. Ao vË-las no chÇo, porÊm, uma outra frase surgiu em sua cabeÚa. "Aprenda a respeitar e seguir os sinais", havia falado o velho rei. Um sinal. O rapaz riu para si mesmo. Depois apanhou as duas pedras no chÇo e as recolocou no alforje. NÇo pensava costurar o buraco - as pedras poderiam escapar por ali sempre que desejassem. Ele havia entendido que certas coisas a gente nÇo devia perguntar - para nÇo fugir do prÕprio destino. "Prometi tomar minhas prÕprias decisÈes", disse para si mesmo. Mas as pedras tinham dito que o velho, continuava com ele, e isto lhe deu mais confianÚa. Olhou de novo para o mercado vazio, e nÇo sentiu o desespero de antes. NÇo era um mundo estranho; era um mundo novo. Pois, afinal de contas, tudo que ele queria era exatamente isto: conhecer mundos novos. Mesmo que ele jamais chegasse atÊ as Pir×mides, ele j tinha ido muito mais longe do que qualquer pastor que conhecia. "Ah, se eles soubessem que a apenas duas horas de barco existem tantas coisas diferentes". O mundo novo aparecia na sua frente sob a forma de um mercado vazio, mas ele j vira aquele mercado cheio de vida, e nunca mais ia se esquecer. Lembrou-se da espada - foi um preÚo caro contemplÂ-la um pouco, mas tambÊm nunca tinha visto nada igual antes. Sentiu de repente que ele podia olhar o mundo como uma pobre vÎtima de um ladrÇo, ou como um aventureiro em busca de um tesouro. "Sou um aventureiro em busca de um tesouro", pensou, antes de cair exausto no sono. Acordou com um sujeito lhe cutucando. Tinha dormido no meio do mercado, e a vida daquela praÚa estava prestes a recomeÚar de novo. Olhou em volta, procurando suas ovelhas, e percebeu que estava em outro mundo. Ao invÊs de sentir-se triste, ficou feliz. NÇo tinha mais que seguir em busca de Âgua e comida; podia seguir em busca de um tesouro. NÇo tinha um centavo no bolso, mas tinha fÊ na vida. Havia escolhido, na noite anterior, ser um aventureiro igual aos personagens dos livros que costumava ler. ComeÚou a andar sem pressa pela praÚa. Os mercadores colocaram em pÊ suas barracas; ajudou um doceiro a montar a sua. Havia um sorriso diferente no rosto daquele doceiro: estava alegre, desperto para a vida, pronto para comeÚar um bom dia de trabalho. Era um sorriso que lembrava alguma coisa do velho, aquele velho e misterioso rei que havia conhecido. "Este doceiro nÇo est fazendo doces porque quer viajar, ou porque quer casar com a filha de um comerciante. "Este doceiro faz doce porque gosta disto", pensou o rapaz, e notou que podia fazer a mesma coisa que o velho - saber se uma pessoa est prÕxima ou distante de sua Lenda Pessoal. SÕ em olhar para ela. "ê fÂcil, e eu nunca havia percebido isto." Quando acabaram de montar a barraca, o doceiro lhe estendeu o primeiro doce que havia feito. O rapaz comeu satisfeito, agradeceu, e seguiu seu caminho. Quando j havia se afastado um pouco, lembrou-se que a barraca havia sido montada com uma pessoa falando Ârabe e a outra, espanhol. E tinham se entendido perfeitamente. "Existe uma linguagem que est alÊm das palavras", pensou o rapaz. "Eu j experimentei isto com as ovelhas, e agora estou experimentando com os homens." Estava aprendendo vÂrias coisas novas. Coisas que ele j havia experimentado, e que no entanto eram novas, porque tinham passado por ele que tivesse percebido. E nÇo tinha percebido, porque estava acostumado com elas. "Se eu aprender a decifrar esta linguagem sem palavras, eu vou conseguir decifrar o mundo". "Tudo Ê uma coisa sÕ", falava o velho. Resolveu andar sem pressa e sem ansiedade pelas pequenas ruas de T×nger: sÕ desta maneira ia conseguir perceber os sinais. Isto exigia muita paciËncia, mas esta Ê a primeira virtude que um pastor aprende. Mais uma vez percebeu que estava aplicando naquele mundo estranho as mesmas liÚÈes que suas ovelhas lhe ensinaram. "Tudo Ê uma coisa sÕ", havia falado o velho. O Mercador de Cristais viu o dia nascer, e sentiu a mesma angßstia que experimentava todas as manhÇs. Estava h quase trinta anos naquele mesmo lugar, uma loja no alto de uma ladeira, onde raramente passava um comprador. Agora era tarde para mudar qualquer coisa: tudo que havia aprendido na vida era vender e comprar cristais. Houve um tempo em que muita gente conhecia sua loja: mercadores Ârabes, geÕlogos franceses e ingleses, soldados alemÇes sempre com dinheiro no bolso. Naquela Êpoca era uma grande aventura vender cristais, e ele pensava como ia ficar rico, e como ia ter belas mulheres em sua velhice. Depois o tempo foi passando, e a cidade tambÊm. Ceuta cresceu mais que T×nger, e o comÊrcio mudou de rumo. Os vizinhos mudaram-se, e ficaram apenas algumas lojas na ladeira. NinguÊm ia subir uma ladeira por causa de umas poucas lojas. Mas o Mercador de Cristais nÇo tinha escolha. Tinha vivido trinta anos de sua vida comprando e vendendo peÚas de cristal, e agora era tarde demais para mudar de rumo. Durante a manhÇ inteira ficou olhando o pequeno movimento da rua. Fazia aquilo h anos, e j sabia o horÂrio de cada pessoa. Quando faltavam alguns minutos para o almoÚo, um rapaz estrangeiro parou diante de sua vitrine. Estava vestido normalmente, mas os olhos experimentados do Mercador de Cristais concluÎram que ele nÇo tinha dinheiro. Mesmo assim resolveu entrar e esperar alguns instantes, atÊ que o rapaz fosse embora. Havia um cartaz na porta dizendo que ali se falavam vÂrias lÎnguas. O rapaz viu um homem aparecer atrÂs do balcÇo. - Posso limpar estes vasos se vocË quiser - disse o rapaz. - Assim como eles estÇo, nenhum comprador vai querer comprar. O homem olhou sem dizer nada - Em troca, vocË me paga um prato de comida. O homem continuou em silËncio, e o rapaz sentiu que precisava tomar uma decisÇo. Dentro de seu alforje havia o casaco - nÇo ia precisar mais dele no deserto. Tirou o casaco e comeÚou a limpar os vasos. Durante meia hora limpou todos os vasos da vitrine; neste meio tempo entraram dois fregueses e compraram cristais do homem. Quando acabou de limpar tudo, ele pediu ao homem um prato de comida. - Vamos comer - disse o Mercador de Cristais. Colocou uma tabuleta na porta, e foram atÊ um minßsculo bar no alto na ladeira. Assim que sentaram na ßnica mesa existente, o Mercador de Cristais sorriu. - NÇo era preciso limpar nada - disse. - A lei do AlcorÇo obriga a dar de comer a quem tem fome. - EntÇo por que me deixou fazer isto? - perguntou o rapaz. - Porque os cristais estavam sujos. E tanto vocË como eu precisÂvamos limpar as cabeÚas dos maus pensamentos. Quando acabaram de comer, o Mercador virou-se para o rapaz: - Queria que vocË trabalhasse na minha loja . Hoje entraram dois fregueses enquanto vocË limpava os vasos, e isto Ê um bom sinal. "As pessoas falam muito em sinais", pensou o pastor. "Mas nÇo percebem o que estÇo dizendo. Da mesma maneira que eu nÇo percebia que h muitos anos falava com minhas ovelhas uma linguagem sem palavras". - Quer trabalhar para mim? - insistiu o Mercador. - Posso trabalhar o resto do dia - respondeu o rapaz. - Limparei atÊ de madrugada todos os cristais da loja. Em troca, preciso de dinheiro para estar amanhÇ no Egito. O velho riu de novo. - Mesmo que vocË limpasse meus cristais durante um ano inteiro, mesmo que vocË ganhasse uma boa comissÇo de vendas em cada um deles, ainda ia ter que arranjar dinheiro emprestado para ir ao Egito. Existem milhares de quilÆmetros de deserto entre T×nger e as Pir×mides. Houve um momento de silËncio tÇo grande, que a cidade parecia ter adormecido. J nÇo haviam mais os bazares, as discussÈes dos mercadores, os homens que subiam em minaretes e cantavam, as belas espadas com seus punhos cravejados. J nÇo havia mais a esperanÚa e a aventura, velhos reis e Lendas Pessoais, o tesouro e as pir×mides. Era como se todo o mundo estivesse quieto, porque a alma do rapaz estava em silËncio. NÇo havia. nem dor, nem sofrimento, nem decepÚÇo: apenas um olhar vazio atravÊs da pequena porta do bar, e uma vontade imensa de morrer, de que tudo acabasse para sempre naquele minuto. O Mercador olhou espantado para o rapaz. Era como se toda a alegria que tinha visto aquela manhÇ houvesse subitamente desaparecido. - Posso lhe dar dinheiro para voltar Á sua terra, meu filho - disse o Mercador de Cristais. O rapaz continuou em silËncio. Depois levantou-se, ajeitou as roupas, e pegou seu alforje. - Vou trabalhar com o senhor - disse. E depois de outro silËncio demorado, concluiu: - Preciso de dinheiro para comprar algumas ovelhas. H quase um mËs o rapaz estava trabalhando para o Mercador de Cristais, e nÇo era exatamente o tipo de emprego que lhe fazia feliz. O Mercador passava o dia inteiro resmungando atrÂs do balcÇo, pedindo que tomasse cuidado com as peÚas, que nÇo deixasse quebrar nada. Mas continuava no emprego porque o Mercador era um velho rabujento, mas nÇo era injusto; o rapaz recebia uma boa comissÇo em cada peÚa vendida, e j havia conseguido juntar algum dinheiro. Naquela manhÇ havia feito certos cÂlculos: se continuasse a trabalhar todos os dias como estava trabalhando, ia precisar de um ano inteiro para poder comprar algumas ovelhas. - Gostaria de fazer uma estante para os cristais - disse o rapaz ao Mercador. - Ela pode ser colocada do lado de fora, e atrair quem est passando l embaixo da ladeira. - Nunca fiz uma estante antes - respondeu o Mercador. - As pessoas passam e esbarram. Os cristais se quebram. - Quando eu andava pelo campo com as ovelhas, elas podiam morrer se encontrassem uma cobra. Mas isto faz parte da vida das ovelhas e dos pastores. O Mercador atendeu um freguËs que desejava trËs vasos de cristal. Estava vendendo melhor do que nunca, como se o mundo tivesse voltado no tempo, para a Êpoca em que a rua era uma das principais atraÚÈes de T×nger. - O movimento j melhorou bastante - disse ao rapaz, quando o freguËs saiu. - O dinheiro permite que eu viva melhor, e lhe devolver as suas ovelhas em pouco tempo. Para que exigir mais da vida? - Porque temos que seguir os sinais - falou o rapaz, quase sem querer; e arrependeu-se do que dissera, porque o Mercador nunca havia encontrado um rei. "Chama-se PrincÎpio FavorÂvel, sorte de principiante. Porque a vida quer que vocË viva sua Lenda Pessoal", falara o velho. O Mercador, entretanto, estava entendendo o que o rapaz falava. A simples presenÚa dele na loja era um sinal, e com o passar dos dias, com o dinheiro entrando na caixa, ele nÇo estava arrependido de haver contratado o espanhol. Mesmo que o rapaz estivesse ganhando mais do que devia; como ele sempre havia achado que as vendas nÇo mudavam mais, tinha oferecido uma comissÇo alta, e sua intuiÚÇo dizia que em breve o garoto estaria de volta Ás suas ovelhas. - Por que vocË queria conhecer as Pir×mides? - perguntou, para mudar o assunto da estante. - Porque sempre me falaram nelas - disse o rapaz, evitando falar no seu sonho. Agora o tesouro era uma lembranÚa sempre dolorosa, e o rapaz evitava pensar nisto. - Eu nÇo conheÚo ninguÊm aqui que queira atravessar o deserto sÕ para conhecer as Pir×mides - disse o Mercador. - SÇo apenas um monte de pedras. VocË pode construir uma no seu quintal. - VocË nunca teve sonhos de viajar - disse o rapaz, atendendo mais um freguËs que entrava na loja. Dois dias depois o velho procurou o rapaz para falar da estante. - NÇo gosto de mudanÚas - disse o Mercador. - Nem eu nem vocË somos como Hassan, o rico comerciante. Se ele erra numa compra, isto nÇo o afeta muito. Mas nÕs dois temos sempre que conviver com nossos erros. "ê verdade", pensou o rapaz. - Para que vocË quer a estante? - disse o Mercador. - Quero voltar mais rÂpido para minhas ovelhas. Temos que aproveitar quando a sorte est do nosso lado, e fazer tudo para ajudÂ-la da mesma maneira que ela est nos ajudando. Chama-se PrincÎpio FavorÂvel. Ou "sorte de principiante". O velho ficou calado por algum tempo. Depois disse: - O Profeta nos deu o AlcorÇo, e nos deixou apenas cinco obrigaÚÈes para serem seguidas em nossa existËncia. A mais importante Ê a seguinte: sÕ existe um Deus. As outras sÇo: rezar cinco vezes por dia, fazer jejum no mËs de RamadÇ, fazer caridade com os pobres. Parou de falar. Seus olhos ficaram cheios de Âgua ao falar do Profeta. Era um homem fervoroso, e mesmo com toda a sua impaciËncia, procurava viver sua vida de acordo com a lei muÚulmana. - E qual a quinta obrigaÚÇo? - perguntou o rapaz. - H dois dias atrÂs vocË disse que eu nunca tive sonhos de viajar - respondeu o Mercador. - A quinta obrigaÚÇo de todo muÚulmano Ê uma viagem. Devemos ir, pelo menos uma vez na vida, Á cidade sagrada de Meca. "Meca Ê muito mais longe que as Pir×mides. Quando eu era jovem, preferi juntar o pouco dinheiro que tinha para comeÚar esta loja. Pensava em ser rico algum dia, para ir a Meca. Passei a ganhar dinheiro, mas nÇo podia deixar ninguÊm cuidando dos cristais, porque os cristais sÇo coisas delicadas. Ao mesmo tempo, via passar defronte a minha loja muitas pessoas que seguiam na direÚÇo de Meca. Haviam alguns peregrinos ricos, que iam com um sÊquito de criados e de camelos, mas a maior parte das pessoas era muito mais pobre do que eu era". "Todas iam e voltavam contentes, e colocavam na porta de suas casas os sÎmbolos da peregrinaÚÇo. Uma delas, um sapateiro que vivia de remendar as botas alheias, me disse que havia caminhado quase um ano pelo deserto, mas que ficava sempre mais cansado quando tinha que caminhar alguns quarteirÈes em T×nger para comprar couro". - Por que nÇo vai a Meca agora? - perguntou o rapaz. - Porque Meca Ê o que me mantÊm vivo. ê o que me faz agØentar todos estes dias iguais, estes vasos calados nas prateleiras, o almoÚo e o jantar naquele restaurante horrÎvel. Tenho medo de realizar meu sonho, e depois nÇo ter mais motivos para continuar vivo. "VocË sonha com ovelhas e com pir×mides. ê diferente de mim, porque deseja realizar seus sonhos. Eu quero apenas sonhar com Meca. J imaginei milhares de vezes a travessia do deserto, minha chegada na praÚa onde est a Pedra Sagrada, as sete voltas que devo dar em torno dela antes de tocÂ-la. J imaginei quais pessoas estarÇo do meu lado, na minha frente, e as conversas e oraÚÈes que compartilharemos juntos. Mas tenho medo que seja uma grande decepÚÇo, entÇo prefiro apenas sonhar". Neste dia, o Mercador deu permissÇo ao rapaz para construir a estante. Nem todos podem ver os sonhos da mesma maneira. Mais dois meses se passaram, e a estante trouxe muitos fregueses Á loja dos cristais. O rapaz calculou que, se trabalhasse mais seis meses, poderia voltar Á Espanha e comprar sessenta ovelhas, e mais sessenta ovelhas. Em menos de um ano ele teria duplicado seu rebanho, e ia poder negociar com os Ârabes, porque j conseguia falar aquela lÎngua estranha. Depois daquela manhÇ no mercado, ele nÇo havia mais utilizado o Urim e o Tumim, porque o Egito passou a ser apenas um sonho tÇo distante para ele como era a cidade de Meca para o Mercador. Entretanto, o rapaz agora estava contente com seu trabalho, e pensava a todo momento no dia em que iria desembarcar em Tarifa como um vencedor. "Lembre-se de saber sempre o que quer", havia falado o velho rei. O rapaz sabia, e estava trabalhando para isto. Talvez seu tesouro tivesse sido chegar Áquela terra estranha, encontrar um assaltante, e dobrar o nßmero de seu rebanho sem ter gasto um centavo sequer. Estava orgulhoso de si mesmo. Havia aprendido coisas importantes, como o comÊrcio de cristais, linguagem sem palavras, e os sinais. Uma tarde viu um homem no alto da ladeira, reclamando que era impossÎvel encontrar um lugar decente para beber alguma coisa depois de toda a subida. O rapaz j conhecia a linguagem dos sinais, e chamou o velho para conversar. - Vamos vender ch para as pessoas que sobem a ladeira - disse ele. - Muitas pessoas vendem ch por aqui - respondeu o Mercador. - Podemos vender ch em vasos de cristal. Assim as pessoas vÇo gostar do chÂ, e vÇo querer comprar os cristais. Porque o que mais seduz os homens Ê a beleza. O Mercador olhou para o rapaz durante algum tempo. NÇo respondeu nada. Mas naquela tarde, depois de fazer suas oraÚÈes e fechar a loja, sentou-se na calÚada com ele e convidou-o a fumar narguilÊ - aquele estranho cachimbo que os Ârabes usavam. - O que vocË est procurando? - perguntou o velho Mercador de Cristais. - J lhe disse. Preciso comprar de volta as ovelhas. E para isto Ê necessÂrio dinheiro. O velho colocou algumas brasas novas no narguilÊ, e deu uma longa tragada. - H trinta anos tenho esta loja. ConheÚo o bom e o mau cristal, e conheÚo todos os detalhes do seu funcionamento. Estou acostumado com seu tamanho e seu movimento. Se vocË colocar ch em cristais, a loja ir crescer. EntÇo eu vou ter que mudar minha maneira de vida. - E isto nÇo Ê bom? - Estou acostumado com minha vida. Antes de vocË, eu pensava que havia perdido tanto tempo no mesmo lugar, enquanto meus amigos todos mudavam, quebravam, ou progrediam Isto me deixava com uma imensa tristeza. Agora eu sei que nÇo era bem assim: a loja tem o exato tamanho que eu sempre quis que ela tivesse. NÇo quero mudar, porque nÇo sei como mudar. J estou muito acostumado comigo mesmo. O rapaz nÇo sabia o que dizer. O velho entÇo continuou: - VocË foi uma bËnÚÇo para mim. E hoje estou entendendo uma coisa: toda bËnÚÇo que nÇo Ê aceita, transforma-se numa maldiÚÇo. Eu nÇo quero mais da vida. E vocË est me forÚando a ver riquezas e horizontes que eu nunca conheci. Agora que os conheÚo, e que conheÚo minhas possibilidades imensas, vou me sentir pior do que me sentia antes. Porque sei que posso ter tudo, e nÇo quero. "Ainda bem que eu nÇo disse nada ao pipoqueiro", pensou o rapaz. Continuaram fumando o narguilÊ por algum tempo, enquanto o sol se escondia. Estavam conversando em Ârabe, e o rapaz estava satisfeito consigo mesmo, porque falava Ârabe. Houve uma Êpoca em que ele achou que as ovelhas podiam ensinar tudo sobre o mundo. Mas as ovelhas nÇo sabiam ensinar Ârabe. "Devem ter outras coisas no mundo que as ovelhas nÇo sabem ensinar", pensou o rapaz, enquanto olhava o Mercador em silËncio. "Porque elas sÕ estÇo em busca de Âgua e comida. "Acho que nÇo sÇo elas que ensinam: eu Ê que aprendo". - Maktub - disse finalmente o mercador. - O que Ê isto? - VocË precisaria ter nascido Ârabe para compreender - respondeu ele. - Mas a traduÚÇo seria algo como "est escrito". E enquanto apagava as brasas do narguilÊ, disse que o rapaz podia comeÚar a vender ch nos vasos. ás vezes, Ê impossÎvel deter o rio da vida. Os homens subiam a ladeira e ficavam cansados. EntÇo, l no seu topo, havia uma loja de belos cristais com ch de menta refrescante. Os homens entravam para beber o chÂ, que era servido em lindos vasos de cristal. "Jamais minha mulher pensou nisto", lembrava um, e comprava alguns cristais, porque ia ter visitas naquela noite: seus convidados ficariam impressionados com a riqueza das taÚas. Outro homem passou a garantir que o ch era sempre mais gostoso quando servido em recipientes de cristal, pois conservavam melhor o aroma. Um terceiro disse ainda que era tradiÚÇo no Oriente utilizar vasos de cristal junto com chÂ, por causa de seus poderes mÂgicos. Em pouco tempo, a novidade se espalhou, e muitas pessoas passaram a subir atÊ o topo da ladeira para conhecer a loja que estava fazendo algo de novo num comÊrcio tÇo antigo. Outras lojas de ch em copos de cristal foram abertas, mas nÇo ficavam em cima de uma ladeira, e por isso estavam sempre vazias. Em pouco tempo, o Mercador teve que contratar mais dois empregados. Passou a importar, junto com os cristais, quantidades enormes de chÂ, que eram diariamente consumidas pelos homens e mulheres com sede de coisas novas. E assim transcorreram seis meses. O rapaz acordou antes do sol nascer. Tinham-se passado onze meses e nove dias desde que ele havia pisado pela primeira vez no continente africano. Vestiu sua roupa Ârabe, de linho branco, comprada especialmente para aquele dia. Colocou o lenÚo na cabeÚa, fixo por um anel feito de pele de camelo. CalÚou as sandÂlias novas, e desceu sem fazer qualquer ruÎdo. A cidade ainda dormia. Ele fez um sanduÎche de gergelim, e bebeu ch quente no vaso de cristal. Depois sentou-se na soleira da porta, fumando sozinho o narguilÊ. Fumou em silËncio, sem pensar em nada, escutando apenas o ruÎdo sempre constante do vento que soprava trazendo o cheiro do deserto. Depois que acabou de f'umar, enfiou a mÇo num dos bolsos do traje, e ficou alguns instantes contemplando o que havia retirado l de dentro. Havia um grande maÚo de dinheiro. O suficiente para comprar cento e vinte ovelhas, uma passagem de volta, e uma licenÚa de comÊrcio entre seu paÎs e o paÎs onde estava. Esperou pacientemente que o velho acordasse e abrisse a loja. Os dois entÇo foram juntos tomar mais chÂ. - Vou embora hoje - disse o rapaz. - Tenho dinheiro para comprar minhas ovelhas. VocË tem dinheiro para ir Á Meca. O velho nÇo disse nada. - PeÚo sua bËnÚÇo - insistiu o rapaz. - VocË me ajudou. O velho continuou a preparar o ch em silËncio. Depois de um certo tempo, porÊm, virou-se para o rapaz. - Tenho orgulho de vocË - disse. - VocË trouxe alma para a minha loja de cristais. Mas sabe que eu nÇo vou Á Meca. Como sabe que nÇo voltar a comprar ovelhas. - Quem lhe disse isto? - perguntou o rapaz, assustado. - Maktub - disse simplesmente o velho Mercador de Cristais. E o abenÚoou. O rapaz foi atÊ seu quarto e juntou tudo que tinha. Eram trËs sacolas cheias. Quando j estava saindo, notou que, num canto do quarto, havia seu velho alforje de pastor. Estava todo amassado, e ele quase nem se lembrava mais dele. L dentro estava ainda o mesmo livro e o casaco. Quando ele tirou o casaco, pensando em dar de presente para um rapaz na rua, as duas pedras rolaram pelo chÇo. O Urim e o Tumim. O rapaz entÇo se lembrou do velho rei, e ficou surpreso em perceber h quanto tempo nÇo pensava mais nisto. Durante um ano havia trabalhado sem parar, pensando apenas em conseguir dinheiro para nÇo voltar de cabeÚa baixa para a Espanha. "Nunca desista dos seus sonhos", havia falado o velho rei. "Siga os sinais". O rapaz pegou o Urim e o Tumim no chÇo, e teve novamente aquela estranha sensaÚÇo de que o rei estava perto. Trabalhara duro durante um ano, e os sinais indicavam que agora era o momento de partir. "Vou voltar exatamente a ser o que era antes", pensou o rapaz. "E as ovelhas nÇo me ensinaram a falar Ârabe". As ovelhas, entretanto, tinham ensinado uma coisa muito mais importante: que havia uma linguagem no mundo que todos compreendiam, e que o rapaz tinha utilizado durante todo aquele tempo para fazer a loja progredir. Era a linguagem do entusiasmo, das coisas feitas com amor e com vontade, em busca de algo que se desejava ou em que se acreditava. T×nger j nÇo era mais uma cidade estranha, e ele sentiu que da mesma maneira que tinha conquistado aquele lugar, poderia conquistar o mundo. "Quando vocË deseja uma coisa, todo o Universo conspira para que possa realizÂ-la", havia falado o velho rei. Mas o velho rei nÇo falara de assaltos, de desertos imensos, de pessoas que conhecem os seus sonhos mas nÇo desejam realizÂ-los. O velho rei nÇo havia falado que as Pir×mides eram apenas um monte de pedras, e qualquer um podia fazer um monte de pedras em seu quintal. E tinha se esquecido de dizer que, quando se tem dinheiro para comprar um rebanho maior do que o que possuÎa, deve-se comprar este rebanho. O rapaz pegou o alforje e juntou com seus outros sacos. Desceu as escadas; o velho estava atendendo um casal estrangeiro, enquanto dois outros fregueses andavam pela loja, tomando ch em vasos de cristal. Era um bom movimento para aquela hora da manhÇ. Do lugar onde estava, notou pela primeira vez que o cabelo do Mercador lembrava muito o cabelo do velho rei. Lembrou-se do sorriso do doceiro, no primeira dia em T×nger, quando nÇo tinha para onde ir nem o que comer; tambÊm aquele sorriso lembrava o velho rei. "Como se ele tivesse passado por aqui e deixado uma marca", pensou. "E cada pessoa nÇo tivesse j conhecido este rei em algum momento de suas existËncias. Afinal de contas, ele disse que sempre aparecia para quem vive sua Lenda Pessoal". Saiu sem se despedir do Mercador de Cristais. NÇo queria chorar porque as pessoas podiam ver. Mas ia ter saudade de todo aquele tempo, e de todas as coisas boas que havia aprendido. Estava mais confiante em si e tinha vontade de conquistar o mundo. "Mas estou indo para os campos que j conheÚo, conduzir de novo as ovelhas". E nÇo estava mais contente com sua decisÇo. Tinha trabalhado um ano inteiro para realizar um sonho, e este sonho, a cada minuto, ia perdendo sua import×ncia. Talvez porque nÇo fosse seu sonho. "Quem sabe Ê melhor ser como o Mercador de Cristais: nunca ir Á Meca, e viver da vontade de conhecË-la". Mas estava segurando o Urim e o Tumim nas mÇos, e estas pedras lhe traziam a forÚa e a vontade do velho rei. Por uma coincidËncia - ou um sinal, pensou o rapaz - ele chegou ao bar onde havia entrado no primeiro dia. NÇo havia mais o ladrÇo, e o dono lhe trouxe uma xÎcara de chÂ. "Sempre poderei voltar a ser pastor", pensou o rapaz. "Aprendi a cuidar das ovelhas, e nunca mais me esquecerei de como elas sÇo. Mas talvez nÇo tenha outra oportunidade de chegar atÊ as Pir×mides do Egito. O velho tinha um peitoral de ouro, e sabia minha histÕria. Era um rei de verdade, um rei sÂbio". Estava apenas a duas horas de barco das planÎcies de Andaluzia, mas havia um deserto inteiro entre ele as Pir×mides. O rapaz percebeu talvez esta maneira de pensar a mesma situaÚÇo: na verdade, ele estava duas horas mais perto do seu tesouro. Mesmo que, para caminhar estas duas horas, tivesse demorado quase um ano inteiro. "Sei porque quero voltar para minhas ovelhas. Eu j conheÚo as ovelhas; nÇo dÇo muito trabalho, e podem ser amadas. NÇo sei se o deserto pode ser amado, mas Ê o deserto que esconde o meu tesouro. Se eu nÇo conseguir encontrÂ-lo, poderei sempre voltar para casa. Mas de repente a vida me deu dinheiro suficiente, e eu tenho todo o tempo que preciso; por que nÇo?" Sentiu uma alegria imensa naquele momento. Sempre podia voltar a ser pastor de ovelhas. Sempre podia voltar a ser vendedor de cristais. Talvez o mundo tivesse muitos outros tesouros escondidos, mas ele havia tido um sonho repetido e encontrado um rei. NÇo acontecia com qualquer pessoa. Estava contente quando saiu do bar. Havia se lembrado que um dos fornecedores do Mercador trazia os cristais em caravanas que cruzavam o deserto. Manteve o Urim e o Tumim nas mÇos; por causa daquelas duas pedras, estava de volta ao caminho de seu tesouro. "Sempre estou perto dos que vivem a Lenda Pessoal", dissera o velho rei. NÇo custava nada ir atÊ o armazÊm, saber se as Pir×mides eram de fato muito longe. O InglËs estava sentado numa construÚÇo cheirando a animais, suor, e poeira. NÇo podia chamar aquilo de armazÊm; era apenas um curral. "Toda a minha vida para ter que passar por um lugar como este", pensou enquanto folheava distraÎdo uma revista de quÎmica. "Dez anos de estudo me conduzem a um curral". Mas era preciso seguir adiante. Tinha que acreditar em sinais. Toda a sua vida, todos os seus estudos foram em busca da linguagem ßnica que o Universo falava. Primeiro havia se interessado por Esperanto, depois por religiÈes, e finalmente por Alquimia. Sabia falar Esperanto, entendia perfeitamente as diversas religiÈes, mas ainda nÇo era um Alquimista. Tinha conseguido decifrar coisas importantes, Ê verdade. Mas suas pesquisas chegaram a um ponto onde nÇo conseguia progredir mais. Tinha tentado em vÇo entrar em contato com algum alquimista. Mas os alquimistas eram pessoas estranhas, que sÕ pensavam neles mesmos, e quase sempre recusavam ajuda. Quem sabe, nÇo haviam descoberto o segredo da Grande Obra - chamada de Pedra Filosofal - e por isso se fechavam no silËncio. J havia gasto parte da fortuna que seu pai lhe deixara, buscando inutilmente a Pedra Filosofal. Tinha freqØentado as melhores bibliotecas do mundo, e comprado os livros mais importantes e mais raros sobre alquimia. Num deles descobriu que h muitos anos atrÂs, um famoso alquimista Ârabe havia visitado a Europa. Diziam que ele tinha mais de duzentos anos, que havia descoberto a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida. O InglËs ficou impressionado com a histÕria. Mas tudo nÇo teria passado de mais uma lenda, se um amigo seu - voltando de uma expediÚÇo arqueolÕgica no deserto - nÇo lhe tivesse contado sobre um Ârabe que tinha poderes excepcionais. - Mora no oÂsis de Al-Fayoum - disse seu amigo. - E as pessoas contam que tem duzentos anos, e que Ê capaz de transformar qualquer metal em ouro. O InglËs nÇo coube em si de tanta excitaÚÇo. Imediatamente cancelou todos os seus compromissos, juntou os livros mais importantes, e agora estava ali, naquele armazÊm parecido com um curral, enquanto l fora uma imensa caravana se preparava para cruzar o Saara. A caravana passava por Al-Fayoum. "Tenho que conhecer este maldito Alquimista", pensou o InglËs. E o cheiro dos animais tornou-se um pouco mais tolerÂvel. Um jovem Ârabe, tambÊm carregado de malas, entrou no lugar onde o InglËs estava e o cumprimentou. - Aonde vocË vai? - perguntou o jovem Ârabe. - Para o deserto - respondeu o InglËs, e voltou para a sua leitura. NÇo queria conversar agora. Precisava recordar tudo que havia aprendido em dez anos, pois o Alquimista deveria submetË-lo a alguma espÊcie de prova. O jovem Ârabe tirou um livro e comeÚou a ler. O livro estava escrito em espanhol. "Ainda bem", pensou o InglËs. Sabia falar espanhol melhor que Ârabe, e se este rapaz fosse atÊ Al-Fayoum, ia ter alguÊm para conversar quando nÇo estivesse ocupado com coisas importantes. "Que coisa engraÚada" - pensou o rapaz enquanto tentava mais uma vez ler a cena do enterro que iniciava o livro. - "Faz quase dois anos que comecei a ler, e nÇo consigo passar destas pÂginas". Mesmo sem um rei para interrompË-lo, ele nÇo conseguia se concentrar. Ainda estava em dßvida quanto Á sua decisÇo. Mas estava percebendo uma coisa importante: as decisÈes eram apenas o comeÚo de alguma coisa. Quando alguÊm tomava uma decisÇo, na verdade estava mergulhando numa correnteza poderosa, que levava a pessoa para um lugar que jamais havia sonhado na hora de decidir. "Quando resolvi ir em busca do meu tesouro, nunca imaginei trabalhar numa loja de cristais", pensou o rapaz, para confirmar seu raciocÎnio. "Da mesma maneira, esta caravana pode ser uma decisÇo minha, mas seu percurso ser sempre um mistÊrio". Na sua frente havia um europeu tambÊm lendo um livro. O europeu era antipÂtico, e tinha olhado com desprezo quando ele entrou. Podiam atÊ ter se tornado bons amigos, mas o europeu havia interrompido a conversa. O rapaz fechou o livro. NÇo queria fazer nada que o deixasse parecido com aquele europeu. Tirou o Urim e o Tumim do bolso, e comeÚou a brincar com eles. O estrangeiro deu um grito: - Um Urim e um Tumim! O rapaz, mais que depressa, guardou as pedras no bolso. - NÇo estÇo Á venda - disse. - NÇo valem muito - disse o InglËs. - SÇo cristais de rocha, nada mais. H milhÈes de cristais de rocha na terra, mas para quem entende, estes sÇo Urim e Tumim. NÇo sabia que eles existiam nesta parte do mundo. - Foi o presente de um rei - disse o rapaz. O estrangeiro ficou mudo. Depois enfiou a mÇo no bolso e retirou, tremendo, duas pedras iguais. - VocË falou em um rei - disse. - E vocË nÇo acredita que os reis conversem com pastores - disse o rapaz, desta vez querendo encerrar a conversa. - Ao contrÂrio. Os pastores foram os primeiros a reconhecer um rei que o resto do mundo recusou-se a conhecer. Por isso Ê muito provÂvel que os reis conversem com pastores. E completou, com medo que o rapaz nÇo estivesse entendendo: - Est na BÎblia. No mesmo livro que me ensinou a fazer este Urim e este Tumim. Estas pedras eram a ßnica forma de adivinhaÚÇo permitida por Deus. Os sacerdotes as carregavam num peitoral de ouro. O rapaz ficou contente de estar naquele armazÊm. - Talvez isto seja um sinal - disse o InglËs, como quem pensa alto. - Quem lhe falou em sinais? - o interesse do rapaz crescia a cada momento. - Tudo na vida sÇo sinais - disse o InglËs, desta vez fechando a revista que estava lendo. O Universo Ê feito por uma lÎngua que todo mundo entende, mas que j se esqueceu. Estou procurando esta Linguagem Universal, alÊm de outras coisas. "Por isso estou aqui. Porque tenho que encontrar um homem que conhece esta Linguagem Universal. Um Alquimista." A conversa foi interrompida pelo chefe do armazÊm. - VocËs estÇo com sorte - disse o Ârabe gordo. - Sai hoje Á tarde uma caravana para Al-Fayoum. - Mas eu vou ao Egito - disse o rapaz. - Al-Fayoum Ê no Egito - disse o dono. - Que tipo de Ârabe vocË Ê? O rapaz disse que era espanhol. O InglËs ficou satisfeito: mesmo vestido como Ârabe, o rapaz pelo menos era europeu. - Ele chama de "sorte" os sinais - disse o InglËs, depois que o gordo Ârabe saiu. - Se eu pudesse, escreveria uma gigantesca enciclopÊdia sobre as palavras "sorte" e "coincidËncia". ê com estas palavras que se escreve a Linguagem Universal. Depois comentou com o rapaz que nÇo havia sido "coincidËncia" encontrÂ-lo com o Urim e o Tumim na mÇo. Perguntou se ele tambÊm estava indo em busca do Alquimista. - Estou indo em busca de um tesouro - disse o rapaz, e arrependeu-se imediatamente. Mas o InglËs pareceu nÇo dar import×ncia. - De certa forma, eu tambÊm estou, disse. - E nem sei o que quer dizer Alquimia - completou o rapaz, quando o dono do armazÊm comeÚou a chamÂ-los para fora. - Eu sou o LÎder da Caravana - disse um senhor de barba longa e olhos escuros. - Tenho poder de vida e de morte sobre cada pessoa que carrego. Porque o deserto Ê uma mulher caprichosa, e Ás vezes deixa os homens loucos. Haviam quase duzentas pessoas, e o dobro de animais. Eram camelos, cavalos, burros, aves. O InglËs tinha vÂrias malas, cheias de livros. Haviam mulheres, crianÚas, e vÂrios homens com espadas na cintura e longas espingardas nos ombros. Um imenso burburinho enchia o local, e o LÎder teve que repetir vÂrias vezes suas palavras para que todos entendessem. - H vÂrios homens e deuses diferentes no coraÚÇo destes homens. Mas meu ßnico Deus Ê Allah, e por ele eu juro que farei o possÎvel e o melhor para vencer mais uma vez o deserto. Agora quero que cada um de vocËs jure pelo Deus em que acredita, no fundo do seu coraÚÇo, de que ir me obedecer em qualquer circunst×ncia. No deserto, a desobediËncia significa a morte. Um murmßrio correu baixo por todas as pessoas. Estavam jurando em voz baixa diante de seu Deus. O rapaz jurou por Jesus Cristo. O InglËs ficou em silËncio. O murmßrio se estendeu um tempo maior do que uma simples jura; as pessoas tambÊm estavam pedindo proteÚÇo aos cÊus. Ouviu-se um longo toque de clarim, e cada um montou em seu animal. O rapaz e o InglËs haviam comprado camelos, e subiram com uma certa dificuldade. O rapaz ficou com pena do camelo do InglËs: estava carregado com as pesadas sacolas de livros. - NÇo existem coincidËncias - disse o InglËs, tentando continuar a conversa que haviam iniciado no armazÊm. - Foi um amigo que me trouxe atÊ aqui, porque conhecia um Ârabe, que... Mas a caravana comeÚou a andar, e ficou impossÎvel escutar o que o InglËs estava dizendo. Entretanto, o rapaz sabia exatamente do que se tratava: a cadeia misteriosa que vai unindo uma coisa com a outra, que o tinha levado a ser pastor, a ter o mesmo sonho, e estar numa cidade perto da âfrica, e encontrar na praÚa um rei, e ser roubado para conhecer um mercador de cristais, e... "Quanto mais se chega perto do sonho, mais a Lenda Pessoal vai se tornando a verdadeira razÇo de viver", pensou o rapaz. A caravana comeÚou a seguir em direÚÇo ao poente. Viajavam de manhÇ, paravam quando o sol ficava mais forte, e seguiam de novo ao entardecer. O rapaz conversava pouco com o InglËs, que passava a maior parte do tempo entretido pelos livros. EntÇo, passou a observar em silËncio a marcha de animais e homens pelo deserto. Agora tudo era muito diferente do dia em que haviam partido: naquele dia, confusÇo e gritos, choros e crianÚas e relinchar de animais, se misturavam com as ordens nervosas dos guias e dos comerciantes. No deserto, porÊm, havia apenas o vento eterno, o silËncio, e o casco dos animais. Mesmo os guias conversavam pouco entre si. "J cruzei muitas vezes estas areias" - disse um cameleiro certa noite. "Mas o deserto Ê tÇo grande, os horizontes ficam tÇo longe, que fazem a gente se sentir pequeno e permanecer em silËncio". O rapaz entendeu o que o cameleiro queria dizer, mesmo sem ter pisado antes num deserto. Todas as vezes que olhava o mar ou o fogo, era capaz de ficar horas em silËncio, sem pensar em nada, mergulhado na imensidÇo e na forÚa dos elementos. "Aprendi com ovelhas e aprendi com cristais", pensou ele. "Posso tambÊm aprender com o deserto. Ele me parece mais velho e mais sÂbio". O vento nÇo parava nunca. O rapaz lembrou-se do dia em que sentiu este mesmo vento, sentado num forte em Tarifa. Talvez ele agora estivesse roÚando de leve pela lÇ de suas ovelhas, que seguiam em busca de alimento e Âgua pelos campos de Andaluzia. "NÇo sÇo mais minhas ovelhas", disse para si mesmo, sem sentir saudades. "Devem ter se acostumado a um novo pastor, e j me esqueceram. Isto Ê bom. Quem est acostumado a viajar, como as ovelhas, sabe que Ê sempre necessÂrio partir um dia". Lembrou-se depois, da filha do comerciante, e teve certeza de que ela j havia casado. Quem sabe com um pipoqueiro, ou com um pastor que tambÊm soubesse ler e contasse histÕrias extraordinÂrias; afinal, ele nÇo devia ser o ßnico. Mas ficou impressionado com o seu pressentimento: talvez ele estivesse aprendendo tambÊm esta histÕria de Linguagem Universal, que sabe o passado e o presente de todos os homens. "Pressentimentos", como sua mÇe costumava dizer. O rapaz comeÚou a entender que os pressentimentos eram os rÂpidos mergulhos que a alma dava nesta corrente Universal de vida, onde a histÕria de todos os homens est ligada entre si, e podemos saber tudo, porque tudo est escrito. "Maktub", disse o rapaz, lembrando-se do Mercador de Cristais. O deserto era Ás vezes feito de areia, e Ás vezes feito de pedra. Se a caravana chegava em frente a uma pedra, ela a contornava; se estavam diante de um rochedo, davam uma longa volta. Se a areia era fina demais para o casco dos camelos, procuravam um lugar onde a areia fosse mais resistente. ás vezes o chÇo estava coberto de sal, no lugar onde um lago devia haver existido. Os animais entÇo se queixavam, e os cameleiros desciam e desatolavam os animais. Depois colocavam as cargas nas prÕprias costas, passavam pelo chÇo traiÚoeiro, e novamente carregavam os animais. Se um guia ficava doente ou morria, os cameleiros lanÚavam a sorte e escolhiam um novo guia. Mas tudo isto acontecia por uma ßnica razÇo: nÇo importava quantas voltas tivesse que dar, a caravana seguia sempre em direÚÇo a um mesmo ponto. Depois de vencidos os obstÂculos, ela voltava de novo sua frente para o astro que indicava a posiÚÇo do oÂsis. Quando as pessoas viam aquele astro brilhando no cÊu pela manhÇ, sabiam que ele indicava um lugar com mulheres, Âgua, t×maras e palmeiras. SÕ o InglËs nÇo percebia aquilo: estava a maior parte do