tempo imerso na leitura dos seus livros. O rapaz tambÊm tinha um livro, que havia tentado ler nos primeiros dias de viagem. Mas achava muito mais interessante olhar a caravana e escutar o vento. Assim que aprendeu a conhecer melhor seu camelo e a se afeiÚoar a ele, jogou o livro fora. Era um peso desnecessÂrio, apesar do rapaz haver criado a superstiÚÇo de que toda vez que abria o livro, encontrava alguÊm importante. Terminou fazendo amizade com o cameleiro que viajava sempre ao seu lado. De noite, quando paravam em volta das fogueiras, costumava contar suas aventuras como pastor ao cameleiro. Numa destas conversas o cameleiro comeÚou a falar de sua vida. - Eu morava num lugar perto de El Cairum - contou. - Tinha minha horta, meus filhos e uma vida que nÇo ia mudar atÊ o dia de minha morte. Num ano em que a colheita foi melhor, seguimos todos para Meca, e eu cumpri a ßnica obrigaÚÇo que estava faltando na minha vida. Podia morrer em paz, e gostava disto. "Certo dia a terra comeÚou a tremer, e o Nilo subiu alÊm do seu limite. Aquilo que eu pensava que sÕ acontecia com os outros, terminou acontecendo comigo. Meus vizinhos tiveram medo de perder suas oliveiras com a inundaÚÇo; minha mulher teve receio de que nossos filhos fossem levados pelas Âguas. E eu tive pavor de ver destruÎdo tudo que havia conquistado. "Mas nÇo houve jeito. A terra ficou imprestÂvel e tive que arranjar outro meio de vida. Hoje sou cameleiro. Mas aÎ entendi a palavra de Allah: ninguÊm sente medo do desconhecido, porque qualquer pessoa Ê capaz de conquistar tudo que quer e necessita. "SÕ sentimos medo de perder aquilo que temos, sejam nossas vidas ou nossas plantaÚÈes. Mas este medo passa quando entendemos que nossa histÕria e a histÕria do mundo foram escritas pela mesma MÇo". ás vezes as caravanas se encontravam durante a noite. Sempre uma delas tinha o que a outra estava precisando - como se realmente tudo fosse escrito por uma sÕ MÇo. Os cameleiros trocavam informaÚÈes sobre as tempestades de vento, e se reuniam em torno das fogueiras, contando as histÕrias do deserto. Outras vezes chegavam misteriosos homens encapuÚados; eram beduÎnos que espionavam a rota seguida pelas caravanas. Davam notÎcias de assaltantes e tribos bÂrbaras. Chegavam no silËncio e partiam no silËncio, com as roupas negras deixando apenas os olhos de fora. Numa destas noites o cameleiro veio atÊ a fogueira onde o rapaz e o InglËs estavam sentados. - H rumores de guerra entre os clÇs - disse o cameleiro. Os trËs ficaram quietos. O rapaz notou que havia medo no ar, mesmo que ninguÊm tivesse dito nenhuma palavra. Mais uma vez estava percebendo a linguagem sem palavras, a Linguagem Universal. Depois de certo tempo, o InglËs perguntou se havia perigo. - Quem entra no deserto nÇo pode voltar - disse o cameleiro. - Quando nÇo se pode voltar, sÕ devemos ficar preocupado com a melhor maneira de seguir em frente. O resto Ê por conta de Allah, inclusive o perigo. E concluiu dizendo a misteriosa palavra: "Maktub". - VocË precisa prestar mais atenÚÇo Ás caravanas - disse o rapaz ao InglËs, depois que o cameleiro saiu. - Elas dÇo muitas voltas, mas rumam sempre para o mesmo lugar. - E vocË devia ler mais sobre o mundo - respondeu o InglËs. - Os livros sÇo iguais Ás caravanas. O imenso grupo de homens e animais comeÚou a andar mais rÂpido. AlÊm do silËncio durante o dia, as noites - quando as pessoas costumavam se reunir para conversar em torno das fogueiras - comeÚaram a ficar tambÊm silenciosas. Certo dia o LÎder da Caravana decidiu que nem fogueiras podiam mais ser acesas, para nÇo chamar a atenÚÇo sobre a caravana. Os viajantes passaram a fazer uma roda de animais, e dormiam todos juntos no centro, tentando se proteger do frio noturno. O LÎder passou a instalar sentinelas armadas em volta do grupo. Numa daquelas noites o InglËs nÇo conseguiu dormir. Chamou o rapaz e comeÚaram a passear pelas dunas em volta do acampamento. Era uma noite de lua cheia, e o rapaz contou ao InglËs toda a sua histÕria. O InglËs ficou fascinado com a loja que havia progredido depois que o rapaz comeÚou a trabalhar nela. - Este Ê o princÎpio que move todas as coisas - disse. - Na Alquimia Ê chamado de Alma do Mundo. Quando vocË deseja algo de todo o seu coraÚÇo, vocË est mais prÕximo da Alma do Mundo. Ela Ê sempre uma forÚa positiva. Disse tambÊm que isto nÇo era apenas um dom dos homens: todas as coisas sobre a face da Terra tinham tambÊm uma alma, nÇo importando se era mineral, vegetal, animal, ou apenas um simples pensamento. - Tudo que est sob e sobre a face da Terra se transforma sempre, porque a Terra est viva; e tem uma alma. Somos parte desta Alma, e raramente sabemos que ela sempre trabalha em nosso favor. Mas vocË deve entender que, na loja dos cristais, atÊ mesmo os vasos estavam colaborando para o seu sucesso. O rapaz ficou em silËncio por algum tempo, olhando a lua e a areia branca. - Tenho visto a caravana caminhando atravÊs do deserto - disse, por fim. - Ela e o deserto falam a mesma lÎngua, e por isso ele permite que ela o atravesse. Vai testar cada passo seu, para ver se est em perfeita sintonia com ele; e se estiver, ela chegar atÊ o oÂsis. "Se um de nÕs chegasse aqui com muita coragem, mas sem entender esta lÎngua, ia morrer no primeiro dia." Continuaram olhando a lua, juntos. - Esta Ê a magia dos sinais - continuou o rapaz. - Tenho visto como os guias lËem os sinais do deserto, e como a alma da caravana conversa com a alma do deserto. Depois de algum tempo, foi a vez do InglËs falar. - Preciso prestar mais atenÚÇo Á caravana - disse, por fim. - E eu preciso ler seus livros - falou o rapaz. Eram livros estranhos. Falavam em mercßrio, sal, dragÈes e reis, mas ele nÇo conseguia entender nada. Entretanto, havia uma idÊia que parecia repetida em quase todos os livros: todas as coisas eram manifestaÚÈes de uma coisa sÕ. Num dos livros ele descobriu que o texto mais importante da Alquimia tinha apenas poucas linhas, e havia sido escrito numa simples esmeralda. - ê a TÂboa da Esmeralda - falou o InglËs, orgulhoso por ensinar alguma coisa ao rapaz. - E entÇo, para que tantos livros? - Para entender estas linhas - respondeu o InglËs, sem estar muito convencido da prÕpria resposta. O livro que mais interessou ao rapaz contava a histÕria dos alquimistas famosos. Eram homens que tinham dedicado sua vida inteira a purificar metais nos laboratÕrios; acreditavam que se um metal fosse cozinhado durante muitos e muitos anos, terminaria se libertando de todas as suas propriedades individuais, e em seu lugar sobrava apenas a Alma do Mundo. Esta Coisa ÿnica permitia que os alquimistas entendessem qualquer coisa sobre a face da Terra, porque ela era a linguagem pela qual as coisas se comunicavam. Eles chamavam esta descoberta de Grande Obra - que era composta de uma parte lÎquida e uma parte sÕlida. - NÇo basta observar os homens e os sinais, para se descobrir esta linguagem? - perguntou o rapaz. - VocË tem mania de simplificar tudo - respondeu o InglËs irritado. - A Alquimia Ê um trabalho sÊrio. Precisa que cada passo seja seguido exatamente como os mestres ensinaram. O rapaz descobriu que a parte lÎquida da Grande Obra era chamada de Elixir da Longa Vida, e curava todas as doenÚas, alÊm de evitar que o alquimista ficasse velho. E a parte sÕlida era camada de Pedra Filosofal. - NÇo Ê fÂcil descobrir a Pedra Filosofal - disse o InglËs. - Os alquimistas ficavam muitos anos nos laboratÕrios, olhando aquele fogo que purificava os metais. Olhavam tanto o fogo, que aos poucos suas cabeÚas iam perdendo todas as vaidades do mundo. EntÇo, um belo dia, descobriam que a purificaÚÇo dos metais havia terminado por purificar a eles mesmos. O rapaz se lembrou do Mercador de Cristais. Ele havia falado que tinha sido bom limpar seus vasos, para que ambos se libertassem tambÊm dos maus pensamentos. Estava cada vez mais convencido de que a Alquimia poderia ser aprendida na vida diÂria. - AlÊm disso - falou o InglËs - a Pedra Filosofal tem uma propriedade fascinante. Uma pequena lasca dela Ê capaz de transformar grandes quantidades de metal em ouro. A partir desta frase, o rapaz ficou interessadÎssimo em Alquimia. Pensava que, com um pouco de paciËncia, poderia transformar tudo em ouro. Leu a vida de vÂrias pessoas que tinham conseguido: Helvetius, Elias, Fulcanelli, Geber. Eram histÕrias fascinantes: todos estavam vivendo atÊ o fim sua Lenda Pessoal. Viajavam, encontravam sÂbios, faziam milagres na frente dos incrÊdulos, possuÎam a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida. Mas quando queria aprender a maneira de conseguir a Grande Obra, ficava completamente perdido. Eram apenas desenhos, instruÚÈes em cÕdigo, textos obscuros. - Por que eles falam tÇo difÎcil? - perguntou certa noite ao InglËs. Notou tambÊm que o InglËs andava meio aborrecido e sentindo falta de seus livros. - Para que sÕ os que tËm responsabilidade de entender que entendam - disse ele. - Imagine se todo mundo saÎsse transformando chumbo em ouro. Daqui a pouco o ouro nÇo ia valer nada. "SÕ os persistentes, sÕ aqueles que pesquisam muito, Ê que conseguem a Grande Obra. Por isso estou no meio deste deserto. Para encontrar um verdadeiro Alquimista, que me ajude a decifrar os cÕdigos". - Quando foram escritos estes livros? - perguntou o rapaz. - H muitos sÊculos atrÂs. - Naquela Êpoca nÇo havia imprensa - insistiu o rapaz. NÇo havia jeito de todo mundo tomar conhecimento da Alquimia. Por que esta linguagem tÇo estranha, cheia de desenhos? O InglËs nÇo respondeu nada. Disse que h vÂrios dias estava prestando atenÚÇo Á caravana, e que nÇo conseguia descobrir nada de novo. A ßnica coisa que tinha notado era que os comentÂrios sobre a guerra aumentavam cada vez mais. Um belo dia o rapaz entregou de volta os livros ao InglËs. - EntÇo, aprendeu muita coisa? - perguntou o outro, cheio de expectativa. Estava precisando de alguÊm com quem pudesse conversar para esquecer o medo da guerra. - Aprendi que o mundo tem uma Alma, e quem entender esta Alma, entender a linguagem das coisas. Aprendi que muitos alquimistas viveram sua Lenda Pessoal e terminaram descobrindo a Alma do Mundo, a Pedra Filosofal, o Elixir. "Mas, sobretudo, aprendi que estas coisas sÇo tÇo simples que podem ser escritas numa esmeralda". O InglËs ficou decepcionado. Os anos de estudo, os sÎmbolos mÂgicos, as palavras difÎceis, os aparelhos de laboratÕrio, nada disso havia impressionado o rapaz. "Ele deve ter uma alma primitiva demais para compreender isto", apensou. Pegou seus livros e guardou nos sacos que pendiam do camelo. - Volte para sua caravana - disse. - Ela tampouco me ensinou qualquer coisa. O rapaz voltou a contemplar o silËncio do deserto e a areia levantada pelos animais. "Cada um tem sua maneira de aprender", repetia consigo mesmo. "A maneira dele nÇo Ê a minha, e minha maneira nÇo Ê a dele. Mas ambos estamos em busca de nossa Lenda Pessoal, e eu o respeito por isto". A caravana comeÚou a viajar dia e noite . A toda hora apareciam os mensageiros encapuÚados, e o cameleiro - que haviam se tornado amigo do rapaz - explicou que a guerra entre os clÇs havia comeÚado. Teriam muita sorte se conseguissem chegar ao oÂsis. Os animais estavam exaustos, e os homens cada vez mais silenciosos. O silËncio era mais terrÎvel na parte da noite, quando um simples relincho de camelo - que antes nÇo passava de um relincho de camelo - agora assustava a todos e podia ser um sinal de invasÇo. O cameleiro, porÊm, parecia nÇo se impressionar muito com a ameaÚa de guerra. - Estou vivo - disse ao rapaz, enquanto comia um prato de t×maras na noite sem fogueiras e sem lua. - Enquanto estou comendo, nÇo faÚo nada alÊm de comer. Se estiver caminhando, apenas caminharei. Se tiver que lutar, ser um dia tÇo bom para morrer como qualquer outro. "Porque nÇo vivo nem no meu passado, nem no meu futuro. Tenho apenas o presente, e ele Ê o que me interessa. Se vocË puder permanecer sempre no presente, entÇo ser um homem feliz. Vai perceber que no deserto existe vida, que o cÊu tem estrelas, e que os guerreiros lutam porque isto faz parte da raÚa humana. A vida ser uma festa, um grande festival, porque ela Ê sempre e apenas o momento que estamos vivendo." Duas noites depois, quando se preparava para dormir, o rapaz olhou em direÚÇo ao astro que seguiam durante a noite. Achou que o horizonte estava um pouco mais baixo, porque em cima do deserto haviam centenas de estrelas. - ê o oÂsis - disse o cameleiro. - E porque nÇo chegamos l imediatamente? - Porque precisamos dormir. O rapaz abriu os olhos quando o sol comeÚava a surgir no horizonte. Diante dele, onde as pequenas estrelas haviam estado durante a noite, estendia-se uma fila interminÂvel de tamareiras, cobrindo toda a frente do deserto. - Conseguimos! - disse o InglËs, que tambÊm tinha acabado de acordar. O rapaz, porÊm, mantinha-se calado. Aprendera o silËncio do deserto, e contentava-se em olhar as tamareiras na sua frente. Ainda tinha que caminhar muito para chegar atÊ as Pir×mides, e algum dia aquela manhÇ seria apenas uma lembranÚa. Mas agora ela era o momento presente, a festa da qual havia falado o cameleiro, e ele estava procurando vivË-lo com as liÚÈes do seu passado e os sonhos do seu futuro. Um dia, aquela visÇo de milhares de tamareiras seria apenas uma lembranÚa. Mas para ele, neste momento, significava sombra, Âgua, e um refßgio para a guerra. Assim como um relincho de camelo podia se transformar em perigo, uma fila de tamareiras podia significar um milagre. "O mundo fala muitas linguagens", pensou o rapaz. "Quando os tempos andam depressa, as caravanas correm tambÊm", pensou o Alquimista, enquanto via chegar centenas de pessoas e animais ao OÂsis. As pessoas gritavam atrÂs dos recÊm-chegados, a poeira encobria o sol do deserto, e as crianÚas pulavam de excitaÚÇo ao ver os estranhos. O Alquimista percebeu os chefes tribais se aproximarem do LÎder da Caravana, e conversarem longamente entre si. Mas nada daquilo interessava ao Alquimista. J havia visto muita gente chegar e partir, enquanto o OÂsis e o deserto permaneciam o mesmo. Tinha visto reis e mendigos pisando aquelas areias que sempre mudavam de forma por causa do vento, mas que eram as mesmas que havia conhecido quando crianÚa. Mesmo assim, nÇo conseguia conter no fundo do seu coraÚÇo um pouco da alegria de vida que todo viajante experimentava quando, depois de terra amarela e cÊu azul, o verde das tamareiras aparecia diante de seus olhos. "Talvez Deus tenha criado o deserto para que o homem pudesse sorrir com as tamareiras", pensou ele. Depois resolveu concentrar-se em assuntos mais prÂticos. Sabia que naquela caravana vinha o homem a quem devia ensinar parte de seus segredos. Os sinais lhe haviam contado isto. Ainda nÇo conhecia este homem, mas seus olhos experimentados o reconheceriam quando o visse. Esperava que fosse alguÊm tÇo capaz como seu aprendiz anterior. "NÇo sei porque estas coisas tem que ser transmitidas de boca para ouvido", pensava ele. NÇo era exatamente porque as coisas eram secretas; Deus revelava prodigamente seus segredos a todas as criaturas. Ele sÕ conhecia uma explicaÚÇo para este fato: as coisas tinham que ser transmitidas assim porque elas seriam feitas de Vida Pura, e este tipo de vida dificilmente consegue ser capturado em pinturas ou palavras. Porque as pessoas se fascinam com pinturas e palavras, e terminam se esquecendo da Linguagem do Mundo. Os recÊm-chegados foram trazidos imediatamente Á presenÚa dos chefes tribais de Al-Fayoum. O rapaz nÇo podia acreditar no que estava vendo: ao invÊs de um poÚo cercado de algumas palmeiras - como havia lido certa vez num livro de histÕria - o oÂsis era muito maior do que vÂrias aldeias da Espanha. Tinha trezentos poÚos, cinqØenta mil tamareiras, e muitas tendas coloridas espalhadas entre elas. - Parece as Mil e Uma Noites - disse o InglËs, impaciente para encontrar-se logo com o Alquimista. Foram cercados logo pelas crianÚas, que olhavam curiosas os animais, os camelos, e as pessoas que chegavam. Os homens queriam saber se tinham visto algum combate, e as mulheres disputavam entre si os tecidos e pedras que os mercadores haviam trazido. O silËncio do deserto parecia um sonho distante; as pessoas falavam sem parar, riam e gritavam, como se tivessem saÎdo de um mundo espiritual, para estarem de novo entre os homens. Estavam contentes e felizes. Apesar das precauÚÈes do dia anterior, o cameleiro explicou ao rapaz que os oÂsis no deserto eram sempre considerados terrenos neutros, porque a maior parte dos habitantes eram mulheres e crianÚas. E haviam oÂsis tanto de um lado como de outro; assim, os guerreiros iam lutar do deserto, e deixavam os oÂsis como cidades de refßgio. O LÎder da Caravana reuniu todos com uma certa dificuldade, e comeÚou a dar as instruÚÈes. Iam permanecer ali atÊ que a guerra entre os clÇs tivesse terminada. Como eram visitantes, deviam compartilhar as tendas com habitantes do oÂsis, que lhes dariam seus melhores lugares. Era a hospitalidade da Lei. Depois pediu que todos, inclusive seus prÕprios sentinelas, entregassem as armas aos homens indicados pelos chefes tribais. - SÇo as regras da Guerra - explicou o LÎder da Caravana. Desta maneira, os oÂsis nÇo poderiam abrigar exÊrcitos ou guerreiros. Para surpresa do rapaz, o InglËs tirou de seu casaco um revÕlver cromado e entregou ao homem que recolhia as armas. - Para que um revÕlver? - perguntou. - Para aprender a confiar nos homens - respondeu o InglËs. Estava contente por haver chegado ao final de sua busca. O rapaz, porÊm, pensava em seu tesouro. Quanto mais perto ele ficava de seu sonho, mais as coisas se tornavam difÎceis. NÇo funcionava mais aquilo que o velho rei havia chamado de "sorte de principiante". O que funcionava, sabia ele, era o teste da persistËncia e da coragem de quem busca sua Lenda Pessoal. Por isso ele nÇo podia se apressar, nem ficar impaciente. Se agisse assim, ia terminar sem ver os sinais que Deus havia posto no seu caminho. "Deus colocou no meu caminho", pensou o rapaz, surpreso consigo mesmo. AtÊ aquele momento considerava os sinais como uma coisa do mundo. Algo como comer ou dormir, algo como procurar um amor, ou conseguir um emprego. Nunca tinha pensado que esta era uma linguagem que Deus estava usando para mostrar-lhe o que devia fazer. "NÇo fique impaciente", repetiu o rapaz para si mesmo. "Como disse o cameleiro, coma na hora de comer. E caminhe na hora de caminhar". No primeiro dia todos dormiram de cansaÚo, inclusive o InglËs. O rapaz havia ficado longe dele, numa tenda com outros cinco rapazes de idade quase igual a sua. Eram gente do deserto, e queriam saber histÕrias das grandes cidades. O rapaz falou de sua vida como pastor, e ia comeÚar a contar sua experiËncia na loja de cristais, quando o InglËs entrou na tenda. - Procurei-o a manhÇ inteira - disse, enquanto carregava o rapaz para fora. - Preciso que me ajude a descobrir onde mora o Alquimista. Primeiro os dois tentaram encontrar sozinhos. Um Alquimista devia viver de maneira diferente das outras pessoas do oÂsis, e em sua tenda era muito provÂvel que um forno estivesse sempre aceso. Andaram bastante, atÊ ficarem convencidos que o oÂsis era muito maior do que podiam imaginar, e com muitas centenas de tendas. - Perdemos quase o dia inteiro - disse o InglËs, sentando-se com o rapaz perto de um dos poÚos do oÂsis. - Talvez seja melhor perguntarmos - disse o rapaz. O InglËs nÇo queria contar aos outros sua presenÚa no OÂsis, e ficou bastante indeciso. Mas acabou concordando e pediu ao rapaz, que falava melhor o Ârabe, para fazer isto. O rapaz se aproximou de uma mulher que havia chegado no poÚo para encher de Âgua um saco de pele de carneiro. - Boa tarde, senhora. Gostaria de saber onde vive um Alquimista neste oÂsis - perguntou o rapaz. A mulher disse que jamais havia ouvido falar disso, e foi imediatamente embora. Antes, porÊm, avisou ao rapaz que nÇo deveria conversar com mulheres vestidas de preto, porque eram mulheres casadas. Ele tinha que respeitar a TradiÚÇo. O InglËs ficou decepcionadÎssimo. Tinha feito toda a sua viagem por nada. O rapaz tambÊm ficou triste; seu companheiro tambÊm estava em busca de sua Lenda Pessoal. E quando alguÊm faz isto, o Universo todo se esforÚa para que a pessoa consiga o que deseja, dissera o velho rei. Ele nÇo podia estar enganado. - Eu nunca tinha ouvido falar antes de alquimistas - disse o rapaz. - SenÇo tentaria ajudÂ-lo. Alguma coisa brilhou nos olhos do InglËs. - ê isto! Talvez ninguÊm aqui saiba o que Ê um alquimista! Pergunte pelo homem que cura todas as doenÚas da aldeia! VÂrias mulheres vestidas de preto vieram buscar Âgua no poÚo, e o rapaz nÇo conversou com elas, por mais que o InglËs insistisse. AtÊ que um homem se aproximou. - Conhece alguÊm que cura as doenÚas da aldeia? - perguntou o rapaz. - Allah cura todas as doenÚas, - disse o homem, visivelmente apavorado com os estrangeiros. - VocËs estÇo em busca de bruxos. E depois de dizer alguns versÎculos do AlcorÇo, seguiu seu caminho. Um outro homem se aproximou. Era mais velho, e trazia apenas um pequeno balde. O rapaz repetiu a pergunta. - Por que vocËs querem conhecer este tipo de homem? - respondeu o Ârabe com outra pergunta. - Porque meu amigo viajou muitos meses para encontrÂ-lo - disse o rapaz. - Se este homem existe no oÂsis, deve ser muito poderoso - disse o velho, depois de pensar por alguns instantes. - Nem os chefes tribais conseguiriam vË-lo quando precisam. SÕ quando ele assim determinasse. "Esperem o final da guerra. E entÇo partam com a caravana. NÇo procurem entrar na vida do oÂsis", concluiu, se afastando. Mas o InglËs ficou exultante. Estavam na pista certa. Finalmente surgiu uma moÚa que nÇo estava vestida de negro. Trazia um c×ntaro no ombro, e a cabeÚa coberta com um vÊu, mas tinha o rosto descoberto. O rapaz aproximou-se para perguntar sobre o Alquimista. EntÇo foi como se o tempo parasse, e a Alma do Mundo surgisse com toda a forÚa diante do rapaz. Quando ele olhou seus olhos negros, seus lÂbios indecisos entre um sorriso e o silËncio, ele entendeu a parte mais importante e mais sÂbia da Linguagem que o mundo falava, e que todas as pessoas da terra eram capazes de entender em seus coraÚÈes. E isto era chamado de Amor, uma coisa mais antiga que os homens e que o prÕprio deserto, e que no entanto ressurgia sempre com a mesma forÚa onde quer que dois pares de olhos se cruzassem como se cruzaram aqueles dois pares de olhos diante de um poÚo. Os lÂbios finalmente resolveram dar um sorriso, e aquilo era um sinal, o sinal que ele esperou sem saber durante tanto tempo em sua vida, que tinha buscado nas ovelhas e nos livros, nos cristais e no silËncio do deserto. Ali estava a pura linguagem do mundo, sem explicaÚÈes, porque o Universo nÇo precisava de explicaÚÈes para continuar seu caminho no espaÚo sem fim. Tudo o que o rapaz entendia naquele momento era que estava diante da mulher de sua vida, e sem nenhuma necessidade de palavras, ela devia saber disto tambÊm. Tinha mais certeza disto do que de qualquer coisa no mundo, mesmo que seus pais, e os pais de seus pais dissessem que era preciso namorar, noivar, conhecer a pessoa e ter dinheiro antes de se casar. Quem dizia isto talvez jamais tivesse conhecido a linguagem universal, porque quando se mergulha nela, Ê fÂcil entender que sempre existe no mundo uma pessoa que espera a outra, seja no meio de um deserto, seja no meio das grandes cidades. E quando estas pessoas se cruzam, e seus olhos se encontram, todo o passado e todo o futuro perde qualquer import×ncia, e sÕ existe aquele momento, e aquela certeza incrÎvel de que todas as coisas debaixo do sol foram escritas pela mesma MÇo. A MÇo que desperta o Amor, e que fez uma alma gËmea para cada pessoa que trabalha, descansa e busca tesouros debaixo do sol. Porque sem isto nÇo haveria qualquer sentido para os sonhos da raÚa humana. "Maktub", pensou o rapaz. O InglËs levantou-se de onde estava sentado e sacudiu o rapaz. - Vamos, pergunte a ela! O rapaz se aproximou da moÚa. Ela tornou a sorrir. Ele sorriu tambÊm. - Como vocË se chama? - perguntou. - Me chamo FÂtima - disse a moÚa, olhando para o chÇo. - ê um nome que algumas mulheres tem na terra de onde venho. - ê o nome da filha do Profeta - disse FÂtima. - Os guerreiros os levaram para lÂ. A moÚa delicada falava de guerreiros com orgulho. Ao seu lado o InglËs insistia, e o rapaz perguntou pelo homem que curava todas as doenÚas. - ê um homem que conhece os segredos do mundo. Conversa com os djins do deserto - ela falou. Os djins eram os demÆnios. E a moÚa apontou para o sul, para o lugar onde aquele estranho homem morava. Depois encheu seu c×ntaro e partiu. O InglËs partiu tambÊm, em busca do Alquimista. E o rapaz ficou por muito tempo sentado ao lado do poÚo, entendendo que algum dia o Levante havia deixado em seu rosto o perfume daquela mulher, e que j a amava antes mesmo de saber que ela existia, e que seu amor por ela faria com que encontrasse todos os tesouros do mundo. No dia seguinte o rapaz voltou para o poÚo, para esperar a moÚa. Para sua surpresa, encontrou l o InglËs, olhando pela primeira vez o deserto. - Esperei a tarde e a noite - disse o InglËs. - Ele chegou junto com as primeiras estrelas. Eu lhe contei o que estava procurando. EntÇo ele me perguntou se j havia transformado chumbo em ouro. Eu disse que era isto que queria aprender. "Ele me mandou tentar. Foi tudo que me disse: v tentar". O rapaz ficou quieto. O InglËs havia viajado tanto para ouvir o que j sabia. AÎ ele se lembrou de que tinha dado seis ovelhas ao velho rei pela mesma razÇo. - EntÇo tente - disse para o InglËs. - ê isto que vou fazer. E vou comeÚar agora. Pouco depois que o InglËs saiu, FÂtima chegou para apanhar Âgua com seu c×ntaro. - Vim dizer-lhe uma coisa simples - falou o rapaz. - Eu quero que vocË seja minha mulher. Eu te amo. A moÚa deixou que seu c×ntaro derramasse a Âgua. - Vou esperÂ-la todos os dias aqui. Cruzei o deserto em busca de um tesouro que se encontra perto das pir×mides. A guerra foi para mim uma maldiÚÇo. Agora ela Ê uma bËnÚÇo, porque me deixa perto de vocË. - A guerra um dia vai acabar - disse a moÚa. O rapaz olhou as tamareiras do oÂsis. Havia sido pastor. E ali existiam muitas ovelhas. FÂtima era mais importante que o tesouro. - Os guerreiros buscam seus tesouros - disse a moÚa, como se estivesse adivinhando o pensamento do rapaz. - E as mulheres do deserto tËm orgulho dos seus guerreiros. Depois tornou a encher seu c×ntaro, e foi embora. Todos os dias o rapaz ia para o poÚo esperar FÂtima. Contou-lhe de sua vida de pastor, do rei, da loja de cristais. Ficaram amigos, e com exceÚÇo quinze minutos que passava com ela, o resto do dia custava infinitamente a passar. Quando j estava h quase um mËs no oÂsis, o LÎder da Caravana convocou a todos para uma reuniÇo. - NÇo sabemos quando a guerra vai acabar, e nÇo podemos seguir viagem - disse. - Os combates devem durar por muito tempo, talvez muitos anos. Existem guerreiros fortes e valentes de ambos os lados, e existe a honra de combater em ambos os exÊrcitos. NÇo Ê uma guerra entre bons e maus. ê uma guerra entre forÚas que lutam pelo mesmo poder, e quando este tipo de batalha comeÚa, demora mais que as outras - porque Allah est dos dois lados. As pessoas se dispersaram. O rapaz tornou a encontrar-se com FÂtima aquela tarde, e contou da reuniÇo. - No segundo dia que nos encontramos - disse FÂtima - vocË me falou do seu amor. Depois me ensinou coisas belas, como a Linguagem e a Alma do Mundo. Tudo isto me faz aos poucos ser parte de vocË. O rapaz ouvia sua voz, e achava mais bela que o barulho do vento nas folhas das tamareiras. - Faz muito tempo, que estive aqui neste poÚo esperando por vocË. NÇo consigo me lembrar do meu passado, da TradiÚÇo, da maneira que os homens esperam que se comportem as mulheres do deserto. Desde crianÚa eu sonhava que o deserto ia me trazer o maior presente de minha vida. Este presente chegou afinal, e Ê vocË. O rapaz pensou em tocar sua mÇo. Mas FÂtima segurava as alÚas do c×ntaro. - VocË me falou dos seus sonhos, do velho rei, e do tesouro. VocË me falou dos sinais. EntÇo nÇo tenho medo de nada, porque foram estes sinais que me trouxeram vocË. E eu sou parte do seu sonho, da sua Lenda Pessoal, como vocË costuma chamar. "Por isso quero que siga em direÚÇo ao que veio buscar. Se tiver que esperar o final da guerra, muito bem. Mas se tiver que seguir antes, v em direÚÇo Á sua lenda. As dunas mudam com o vento, mas o deserto permanece no mesmo. Assim ser com nosso amor. "Maktub" - disse. "Se eu for parte de sua Lenda, vocË voltar um dia". O rapaz saiu triste do encontro com FÂtima. Ele se lembrava de muita gente que havia conhecido. Os pastores casados tinham muita dificuldade em convencer suas esposas de que precisavam andar pelos campos. O amor exigia estar junto da pessoa amada. No dia seguinte ele contou tudo isto Á FÂtima. - O deserto leva nossos homens e nem sempre os traz de volta - disse ela. - EntÇo nos acostumamos com isto. E eles passam a existir nas nuvens sem chuva, nos animais que se escondem entre as pedras, na Âgua que sai generosa da terra. Eles passam a fazer parte de tudo, passam a ser a Alma do Mundo. "Alguns retornam. E entÇo todas as outras mulheres ficam felizes, porque os homens que elas esperam tambÊm podem voltar um dia. Antes eu olhava estas mulheres, e invejava sua felicidade. Agora vou ter tambÊm uma pessoa para esperar. "Sou uma mulher do deserto e me orgulho disto. Quero que meu homem tambÊm caminhe livre como o vento que move as dunas. Quero tambÊm poder ver meu homem nas nuvens, nos animais e na Âgua." O rapaz foi procurar o InglËs. Queria contar-lhe sobre FÂtima. Ficou surpreso quando viu que o InglËs havia construÎdo um pequeno forno ao lado de sua tenda. Era um forno estranho, com um frasco transparente em cima. O InglËs alimentava o fogo com lenha, e olhava o deserto. Seus olhos pareciam ter mais brilho quando passava o tempo todo lendo livros. - Esta Ê a primeira fase do trabalho - disse o InglËs. - Tenho que separar o enxofre impuro. Para isto, nao posso ter medo de falhar. O meu medo de falhar foi que me impediu de tentar a Grande Obra atÊ hoje. ê agora que estou comeÚando o que podia ter comeÚado h dez anos atrÂs. Mas me sinto feliz de nÇo ter esperado vinte anos para isto. E continuou a alimentar o fogo e a olhar o deserto. O rapaz ficou ao seu lado por algum tempo, atÊ que o deserto comeÚou a ficar rosado com a luz do entardecer. EntÇo ele sentiu uma imensa vontade de ir atÊ lÂ, para ver se o silËncio conseguia responder suas perguntas. Caminhou sem destino por algum tempo, mantendo as tamareiras do oÂsis ao alcance de seus olhos. Escutava o vento, e sentia as pedras sob seus pÊs. ás vezes encontrava alguma concha, e sabia que aquele deserto, num tempo remoto, havia sido um grande mar. Depois sentou-se numa pedra e deixou-se hipnotizar pelo horizonte que existia na sua frente. NÇo conseguia entender o Amor sem o sentimento de posse; mas FÂtima era uma mulher do deserto, e se alguÊm podia lhe ensinar isto, era o deserto. Ficou assim, sem pensar em nada, atÊ que pressentiu um movimento sobre sua cabeÚa. Olhando para o cÊu, viu que eram dois gaviÈes, voando muito alto. O rapaz comeÚou a olhar os gaviÈes, e os desenhos que eles faziam no cÊu. Parecia uma coisa desordenada, entretanto, tinham algum sentido para o rapaz. Apenas nÇo conseguia compreender seu significado. Decidiu entÇo que devia acompanhar com os olhos o movimento dos pÂssaros, e talvez pudesse ler alguma coisa. Talvez o deserto pudesse lhe explicar o amor sem posse. ComeÚou a sentir sono. Seu coraÚÇo pediu para que nÇo dormisse: ao invÊs disto, devia se entregar. "Estava penetrando na Linguagem do Mundo, e tudo nesta terra faz sentido, atÊ mesmo o vÆo de gaviÈes", disse. E aproveitou para agradecer pelo fato de estar cheio de amor por uma mulher. "Quando se ama, as coisas fazem ainda mais sentido", pensou. De repente, um gaviÇo deu um rÂpido mergulho no cÊu e atacou o outro. Quando fez este movimento, o rapaz teve uma sßbita e rÂpida visÇo: um exÊrcito, de espadas desembainhadas, entrando no oÂsis. A visÇo logo sumiu, mas aquilo lhe deixou sobressaltado. Havia ouvido falar das miragens, e j havia visto algumas: eram desejos que se materializavam sobre a areia do deserto. Entretanto, ele nÇo desejava um exÊrcito invadindo o oÂsis. Pensou em esquecer aquilo e voltar Á sua meditaÚÇo. Tentou novamente concentrar-se no deserto cÆr-de-rosa e nas pedras. Mas alguma coisa em seu coraÚÇo nÇo o deixava quieto. "Siga sempre os sinais", dissera o velho rei. E o rapaz pensou em FÂtima. Lembrou-se do que havia visto, e pressentiu que estava prÕximo de acontecer. Com muita dificuldade, saiu do transe em que havia entrado. Levantou-se, e comeÚou a caminhar em direÚÇo Ás tamareiras. Mais uma vez percebia as muitas linguagens das coisas: desta vez, o deserto era seguro, e o oÂsis se transformara em perigo. O cameleiro estava sentado aos pÊs de uma tamareira, tambÊm olhando o pÆr-do-sol. Viu quando o rapaz surgiu por detrÂs de uma das dunas. - Um exÊrcito se aproxima - disse. - Tive uma visÇo. - O deserto enche de visÈes o coraÚÇo de um homem - respondeu o cameleiro. Mas o rapaz lhe contou dos gaviÈes: estava olhando seu vÆo quando tinha mergulhado de repente na Alma do Mundo. O cameleiro ficou quieto; entendia o que o rapaz estava falando. Sabia que qualquer coisa na face da terra pode contar a histÕria de todas as coisas. Se abrisse um livro em qualquer pÂgina, ou olhasse as mÇos das pessoas, ou cartas de baralho, ou vÆo dos pÂssaros, ou seja l o que fosse, qualquer pessoa iria encontrar um laÚo com a coisa que estava vivendo. Na verdade, nÇo eram as coisas que mostravam nada; eram as pessoas que, olhando para as coisas, descobriam a maneira de penetrar na Alma do Mundo. O deserto estava cheio de homens que ganhavam a vida porque podiam penetrar com facilidade na Alma do Mundo. Eram conhecidos por Adivinhos, e temidos por mulheres e velhos. Os Guerreiros raramente os consultavam, porque era impossÎvel entrar numa batalha sabendo quando se vai morrer. Os Guerreiros preferiam o sabor da luta e a emoÚÇo do desconhecido; o futuro havia sido escrito por Allah, e o que quer que Ele tivesse escrito, era sempre para o bem do homem. EntÇo os Guerreiros viviam apenas o presente, porque o presente era cheio de surpresas, e eles tinham que prestar atenÚÇo em muitas coisas: onde estava a espada do inimigo, onde estava seu cavalo, qual o prÕximo golpe que devia desferir para salvar a vida. O cameleiro nÇo era Guerreiro, e j havia consultado alguns adivinhos. Muitos disseram coisas certas, outros disseram coisas erradas. AtÊ que um deles, o mais velho (e o mais temido), perguntou porque o cameleiro estava tÇo interessado em saber o futuro. - Para que possa fazer as coisas - respondeu o cameleiro. - E mudar o que nÇo gostaria que acontecesse. - EntÇo deixar de ser seu futuro - respondeu o adivinho. - Talvez entÇo eu queira saber o futuro para me preparar para as coisas que virÇo. - Se forem coisas boas, isto ser uma agradÂvel surpresa - disse o adivinho. - Se forem coisas ruins, vocË estar sofrendo muito antes delas acontecerem. - Quero saber o futuro porque sou um homem - disse o cameleiro para o adivinho. E os homens vivem em funÚÇo do seu futuro. O adivinho ficou quieto por algum tempo. Ele era especialista no jogo de varetas, que eram atiradas no chÇo e interpretadas da maneira que caÎam. Naquele dia ele nÇo jogou as varetas. Envolveu-as num lenÚo e tornou a colocar no bolso. - Ganho a vida adivinhando o futuro das pessoas - disse ele. - ConheÚo a ciËncia das varetas, e sei como utilizÂ-la para penetrar neste espaÚo onde tudo est escrito. Ali posso ler o passado, descobrir o que j foi esquecido, e entender os sinais do presente. "Quando as pessoas me consultam, eu nÇo estou lendo o futuro; estou adivinhando o futuro. Porque o futuro pertence a Deus, e ele sÕ o revela em circunst×ncias extraordinÂrias. E como consigo adivinhar o futuro? Pelos sinais do presente. No presente Ê que est o segredo; se vocË prestar atenÚÇo no presente, poder melhorÂ-lo. E se vocË melhorar o presente, o que acontecer depois tambÊm ser melhor. EsqueÚa o futuro e viva cada dia de sua vida nos ensinamentos da Lei, e na confianÚa de que Deus cuida dos seus filhos. Cada dia traz em si a Eternidade". O cameleiro quis saber quais as circunst×ncias em que Deus permitia ver o futuro: - Quando Ele mesmo o mostra. E Deus mostra o futuro raramente, e por uma ßnica razÇo: Ê um futuro que foi escrito para ser mudado. Deus tinha mostrado um futuro ao rapaz, pensou o cameleiro. Porque queria que o rapaz fosse o Seu instrumento. - V falar com os chefes tribais - disse o cameleiro. - Conte dos guerreiros que se aproximam. - Eles vÇo rir de mim. - SÇo homens do deserto, e os homens do deserto estÇo acostumados com os sinais. - EntÇo j devem saber. - NÇo estÇo preocupados com isto. Acreditam que se tiverem que saber algo que Allah deseje lhe contar, alguma pessoa lhes dir isto. J aconteceu muitas vezes antes. Mas hoje, esta pessoa Ê vocË. O rapaz pensou em FÂtima. E resolveu ir ver os chefes tribais. - Trago sinais do deserto - disse ao guarda que ficava na porta da imensa tenda branca no centro do oÂsis. - Quero ver os chefes. O guarda nÇo disse nada. Entrou e demorou-se muito l dentro. Depois saiu com um Ârabe jovem, vestido de branco e ouro. O rapaz contou ao jovem o que havia visto. Ele pediu que esperasse um pouco e tornou a entrar. A noite caiu. Entraram e saÎram vÂrios Ârabes e mercadores. Aos poucos as fogueiras foram se apagando, e o oÂsis comeÚou a ficar tÇo silencioso como o deserto. SÕ a luz da grande tenda continuava acesa. Durante todo este tempo, o rapaz pensava em FÂtima, ainda sem entender a conversa daquela tarde. Finalmente, depois de muitas horas de espera, o guarda mandou que o rapaz entrasse. O que viu deixou-o extasiado. Nunca poderia imaginar que, no meio do deserto, existisse uma tenda como aquela. O chÇo estava coberto com os mais belos tapetes que j havia pisado, e do teto pendiam lustres de metal amarelo trabalhado, coberto de velas acessas. Os chefes tribais estavam sentados no fundo da tenda, em semicÎrculo, descansando seus braÚos e pernas em almofadas de seda com ricos bordados. Criados entravam e saÎam com bandejas de prata cheias de especiarias e chÂ. Alguns se encarregavam de manter acesas as brasas dos narguilÊs. Um suave perfume de fumo enchia o ambiente. Haviam oito chefes, mas o rapaz logo percebeu quem era o mais importante: um Ârabe vestido de branco e ouro, sentado no centro do semicÎrculo. Ao seu lado estava o jovem Ârabe com quem tinha conversado antes. - Quem Ê o estrangeiro que fala de sinais? - perguntou um dos chefes, olhando para ele. - Eu sou - respondeu. E contou o que havia visto. - E por que o deserto ia contar isto a um estranho, quando sabe que estamos h vÂrias geraÚÈes aqui? - disse outro chefe tribal. - Porque meus olhos ainda nÇo se acostumaram com o deserto - respondeu o rapaz. - E eu posso ver coisas que os olhos habituados demais nÇo conseguem mais ver. "ê porque eu sei da Alma do Mundo", pensou consigo mesmo. Mas nÇo falou nada, porque os Ârabes nÇo acreditam nestas coisas. - O OÂsis Ê um terreno neutro. NinguÊm ataca um OÂsis - disse um terceiro chefe. - Eu conto apenas o que vi. Se nÇo quiserem acreditar, nÇo faÚam nada. Um completo silËncio abateu-se sobre a tenda, seguido de uma exaltada conversa entre os chefes tribais. Falavam num dialeto Ârabe que o rapaz nÇo entendia, mas quando ele fez menÚÇo de ir embora, um guarda disse para ficar. O rapaz comeÚou a sentir medo; os sinais diziam que havia alguma coisa errada. Lamentou haver conversado com o cameleiro a respeito. De repente, o velho que estava no centro deu um sorriso quase imperceptÎvel, e o rapaz tranqØilizou-se. O velho nÇo havia participado da discussÇo, e nÇo dissera uma palavra atÊ aquele momento. Mas o rapaz j estava acostumado com a Linguagem do Mundo, e pode sentir uma vibraÚÇo de Paz cruzando a tenda de ponta a ponta. Sua intuiÚÇo dizia que havia agido corretamente em vir. A discussÇo acabou. Ficaram em silËncio por algum tempo, ouvindo o velho. Depois, ele se virou para o rapaz: desta vez seu rosto estava frio e distante. - H dois mil anos, numa terra distante, jogaram num poÚo e venderam como escravo um homem que acreditava em sonhos - disse o velho. - Nossos mercadores o compraram e o trouxeram para o Egito. E todos nÕs sabemos que, quem acredita em sonhos, tambÊm sabe interpretÂ-los. "Embora nem sempre consiga realizÂ-los", pensou o rapaz, lembrando-se da velha cigana. - Por causa dos sonhos do faraÕ com vacas magras e gordas, este homem livrou o Egito da fome. Seu nome era JosÊ. Era tambÊm um estrangeiro numa terra estrangeira, como vocË, e devia ter mais ou menos a sua idade. O silËncio continuou. Os olhos do velho se mantinham frios. - Sempre seguimos a TradiÚÇo. A TradiÚÇo salvou o Egito da fome naquela Êpoca, e o fez o mais rico entre os povos. A TradiÚÇo ensina como os homens devem atravessar o deserto e casar suas filhas. A TradiÚÇo diz que um OÂsis Ê um terreno neutro, porque ambos os lados tem OÂsis, e sÇo vulnerÂveis. NinguÊm disse qualquer palavra enquanto o velho falava. - Mas a TradiÚÇo diz tambÊm para acreditarmos nas mensagens do deserto. Tudo que sabemos foi o deserto que nos ensinou. O velho fez um sinal e todos os Ârabes se levantaram. A reuniÇo estava para terminar. Os narguilÊs foram apagados, e os guardas se colocaram em posiÚÇo de sentido. O rapaz preparou-se para sair, mas o velho falou ainda mais uma vez: - AmanhÇ nÕs vamos romper um acordo que diz que ninguÊm no oÂsis pode portar armas. Durante o dia inteiro aguardaremos os inimigos. Quando o sol descer no horizonte, os homens me devolverÇo as armas. Para cada dez inimigos mortos, vocË receber uma moeda de ouro. "Entretanto, as armas nÇo podem sair do seu lugar sem experimentarem a batalha. SÇo caprichosas como o deserto, e se as acostumamos com isto, da prÕxima vez podem ter preguiÚa de disparar. Se nenhuma delas tiver sido utilizada amanhÇ, pelo menos uma ser usada em vocË." O oÂsis estava iluminado apenas pela lua cheia quando o rapaz saiu. Eram vinte minutos de caminhada atÊ sua tenda, e ele comeÚou a andar. Estava assustado com tudo que havia acontecido. Tinha mergulhado na Alma do Mundo, e o preÚo por acreditar naquilo era a sua vida. Uma aposta alta. Mas tinha apostado alto desde o dia em que havia vendido suas ovelhas para seguir sua Lenda Pessoal. E como dizia o cameleiro, morrer amanhÇ era tÇo bom como morrer em qualquer outro dia. Todo dia era feito para ser vivido ou para abandonar o mundo. Tudo dependia apenas de uma palavra: "Maktub". Caminhou em silËncio. NÇo estava arrependido. Se morresse amanhÇ, seria porque Deus nÇo estava com vontade de mudar o futuro. Mas teria morrido depois de haver cruzado o estreito, trabalhado em uma loja de cristais, conhecido o silËncio do deserto e os olhos de FÂtima. Tinha vivido intensamente cada um dos seus dias, desde que havia saÎdo de casa, h tanto tempo atrÂs. Se morresse amanhÇ, seus olhos teriam visto muito mais coisas do que os olhos dos outros pastores, e o rapaz tinha orgulho disto. De repente ouviu um estrondo, e foi jogado subitamente por terra, com o impacto de um vento que nÇo conhecia. O lugar encheu-se de poeira, que quase cobriu a lua. Na sua frente, um enorme cavalo branco empinou soltando um relincho aterrador. O rapaz mal podia ver o que se passava, mas quando a poeira assentou um pouco, sentiu um pavor que jamais havia sentido antes. Em cima do cavalo estava um cavaleiro todo vestido de negro, com um falcÇo em seu ombro esquerdo. Usava um turbante e um lenÚo que lhe cobria todo o rosto, deixando apenas os olhos de fora. Parecia o mensageiro do deserto, mas sua presenÚa era mais forte do que todas as pessoas que havia conhecido na vida. O estranho cavaleiro puxou a enorme espada curva que trazia presa Á sela. O aÚo brilhou com a luz da lua. - Quem ousou ler o vÆo dos gaviÈes? - perguntou com uma voz tÇo forte que pareceu ecoar entre as cinqØenta mil tamareiras do Al-fayoum. - Eu ousei - disse o rapaz. Lembrou-se imediatamente da imagem de Santiago Matamouros do seu cavalo branco com os infiÊis sob as patas. Era exatamente assim. SÕ que agora a situaÚÇo estava invertida. - Eu ousei - repetiu o rapaz, e abaixou a cabeÚa para receber o golpe da espada. - Muitas vidas serÇo salvas, porque vocËs nÇo contavam com a Alma do Mundo. A espada, porÊm, nÇo desceu rÂpido. A mÇo do estranho foi abaixando lentamente, atÊ que a ponta da l×mina tocou na testa do rapaz. Era tÇo afiada que saiu uma gota de sangue. O cavaleiro estava completamente imÕvel. O rapaz tambÊm. NÇo pensou um minuto sequer em fugir. Dentro do seu coraÚÇo, uma estranha alegria tomou conta dele: ia morrer por sua Lenda Pessoal. E por FÂtima. Os sinais eram verdadeiros, enfim. Ali estava o Inimigo, e por causa disto ele nÇo precisava se preocupar com a morte, porque havia uma Alma do Mundo. Daqui a pouco ele estaria fazendo parte dela. E amanhÇ o Inimigo faria parte dela tambÊm. O estranho, porÊm, apenas mantinha a espada em sua testa. - Por que vocË leu o vÆo dos pÂssaros? - Li apenas o que os pÂssaros queriam contar. Eles querem salvar o oÂsis, e vocËs morrerÇo. O oÂsis tem mais homens que vocËs. A espada continuava em sua testa. - Quem Ê vocË para mudar o destino de Allah? - Allah fez os exÊrcitos, e fez tambÊm os pÂssaros. Allah me mostrou a linguagem dos pÂssaros. Tudo foi escrito pela mesma MÇo, - disse o rapaz, lembrando as palavras do cameleiro. O estranho finalmente retirou a espada da testa. O rapaz sentiu um certo alÎvio. Mas nÇo podia fugir. - Cuidado com as adivinhaÚÈes - disse o estranho. - Quando as coisas estÇo escritas, nÇo h como evitÂ-las. - Apenas vi um exÊrcito - disse o rapaz. - NÇo vi o resultado de uma batalha. O cavaleiro parecia contente com a resposta. Mas mantinha a espada na sua mÇo. - O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira? - Busco minha Lenda Pessoal. Algo que vocË nÇo entender nunca. O cavaleiro colocou a espada na bainha, e o falcÇo no seu ombro deu um grito estranho. O rapaz comeÚou a relaxar. - Precisava testar sua coragem - disse o estranho. - A coragem Ê o dom mais importante para quem busca a Linguagem do Mundo. O rapaz ficou surpreso. Aquele homem estava falando em coisas que pouca gente conhecia. - ê preciso nÇo relaxar nunca, mesmo tendo chegado tÇo longe - continuou ele. - ê preciso amar o deserto, mas jamais confiar inteiramente nele. Porque o deserto Ê uma prova para todos os homens: testa cada passo, e mata quem se distrai. Suas palavras lembravam as palavras do velho rei. - Se os guerreiros chegarem, e sua cabeÚa ainda estiver sobre o pescoÚo depois que o sol morrer, me procure - disse o estranho. A mesma mÇo que havia segurado a espada, empunhou um chicote. O cavalo empinou de novo, levantando uma nuvem de poeira. - Onde vocË mora? - gritou o rapaz, enquanto o cavaleiro se afastava. A mÇo com chicote apontou em direÚÇo ao sul. O rapaz tinha encontrado o Alquimista. Na manhÇ seguinte haviam dois mil homens armados entre as tamareiras de Al-Fayoum. Antes que o sol chegasse ao topo do cÊu, quinhentos guerreiros apareceram no horizonte. Os cavaleiros entraram no oÂsis pela parte norte; parecia uma expediÚÇo de paz, mas haviam armas escondidas sobre os mantos brancos. Quando chegaram perto da grande tenda que ficava no centro de Al-Fayoum, puxaram as cimitarras e as espingardas. E atacaram uma tenda vazia. Os homens do oÂsis cercaram os cavaleiros do deserto. Em meia hora haviam quatrocentos e noventa e nove corpos espalhados pelo chÇo. As crianÚas estavam no outro extremo do bosque de tamareiras, e nÇo viram nada. As mulheres rezavam por seus maridos nas tendas, e tambÊm nÇo viram nada. NÇo fosse pelos corpos espalhados, o oÂsis parecia viver um dia normal. Apenas um guerreiro foi poupado, o comandante do batalhÇo. De tarde ele foi conduzido diante dos chefes tribais, que lhe perguntaram porque havia rompido a TradiÚÇo. O comandante disse que seus homens estavam com fome e sede, exaustos por tantos dias de batalha, e haviam decidido tomar um oÂsis para poder recomeÚar a luta. O chefe tribal disse que sentia pelos guerreiros, mas a TradiÚÇo jamais pode ser rompida. A ßnica coisa que muda no deserto sÇo as dunas, quando sopra o vento. Depois condenou o comandante a uma morte sem honra. Ao invÊs do aÚo ou da bala de fuzil, ele foi enforcado numa tamareira tambÊm morta. Seu corpo balanÚou com o vento do deserto. O chefe tribal chamou o estrangeiro e lhe deu cinqØenta moedas de ouro. Depois tornou a recordar a histÕria de JosÊ no Egito, e pediu para que fosse o Conselheiro do OÂsis. Quando o sol se pÆs por completo, e as primeiras estrelas comeÚaram a aparecer (nÇo brilhavam muito, porque a lua cheia continuava), o rapaz andou em direÚÇo ao sul. Havia apenas uma tenda, e alguns Ârabes que passavam diziam que o lugar era cheio de djins. Mas o rapaz sentou-se e esperou durante muito tempo. O Alquimista apareceu quando a lua j estava alto no cÊu. Trazia dois gaviÈes mortos no ombro. - Aqui estou - disse o rapaz. - NÇo devia estar - respondeu o Alquimista. - Ou sua Lenda Pessoal era chegar atÊ aqui? - Existe uma guerra entre os clÇs. NÇo Ê possÎvel cruzar o deserto. O Alquimista desceu do seu cavalo, e fez um sinal para que o rapaz entrasse com ele na tenda. Era uma tenda igual a todas as outras que havia conhecido no oÂsis - exceto a grande tenda central, que tinha o luxo dos contos de fada. - Ele procurou os aparelhos e fornos de alquimia, mas nÇo encontrou nada. Havia apenas uns poucos livros empilhados, um fogÇo para cozinhar, e os tapetes cheios de desenhos misteriosos. - Sente-se, que vou preparar um ch - disse o Alquimista. E comeremos juntos estes gaviÈes. O rapaz suspeitou que eram os mesmos pÂssaros que havia visto no dia anterior, mas nÇo disse nada. O Alquimista acendeu o fogo, e em pouco tempo um delicioso cheiro de carne enchia a tenda. Era melhor que o perfume dos narguilÊs. - Por que quis me ver? - disse o rapaz. - Por causa dos sinais - respondeu o Alquimista - O vento me contou que vocË viria. E que ia precisar de ajuda. - NÇo sou eu. ê o outro estrangeiro, o InglËs. Ele Ê que o estava buscando. - Ele tem que encontrar outras coisas antes de me encontrar. Mas est no caminho certo. Passou a olhar o deserto. - E eu? - Quando se quer uma coisa, todo o Universo conspira para que a pessoa consiga realizar seu sonho - disse o Alquimista, repetindo as palavras do velho rei. O rapaz entendeu. Outro homem estava no seu caminho, para conduzi-lo atÊ sua Lenda Pessoal. - EntÇo vocË vai me ensinar? - NÇo. VocË j sabe de tudo que precisa. Vou apenas lhe fazer seguir em direÚÇo ao seu tesouro. - Existe uma guerra entre os clÇs. - repetiu o rapaz. - Eu conheÚo o deserto. - J encontrei meu tesouro. Tenho um camelo, o dinheiro das lojas de cristais, e cinqØenta moedas de ouro. Posso ser um homem rico na minha terra. - Mas nada disto est perto das Pir×mides - disse o Alquimista. - Tenho FÂtima. ê um tesouro maior que todo este que consegui juntar. - TambÊm ela nÇo est perto das Pir×mides. Comeram os gaviÈes em silËncio. O Alquimista abriu uma garrafa e derramou um lÎquido vermelho no copo do rapaz. Era vinho, um dos melhores vinhos que havia tomado em sua vida. Mas o vinho era proibido pela lei. - O mal nÇo Ê o que entra na boca do homem - disse o Alquimista. - O mal Ê o que sai dela. O rapaz comeÚou a sentir-se alegre com o vinho. Mas o Alquimista lhe inspirava medo. Sentaram-se do lado de fora da tenda, olhando o brilho da lua, que ofuscava as estrelas. - Beba e se distraia um pouco - disse o Alquimista, notando que o rapaz comeÚava a ficar cada vez mais alegre. - Repouse como um guerreiro sempre repousa antes do combate. Mas nÇo esqueÚa que o seu coraÚÇo est onde est o seu tesouro. E que seu tesouro precisa ser encontrado, para que tudo isto que vocË descobriu no caminho possa fazer sentido. "AmanhÇ venda seu camelo e compre um cavalo. Os camelos sÇo traiÚoeiros: andam milhares de passos, e nÇo dÇo qualquer sinal de cansaÚo. De repente, porÊm, ajoelham e morrem. Os cavalos vÇo se cansando aos poucos. E vocË poder saber sempre o quanto pode pedir deles, ou a Êpoca em que vÇo morrer". Na noite seguinte o rapaz apareceu com um cavalo na tenda do Alquimista. Esperou um pouco e ele apareceu, montado em seu animal, e com o falcÇo no ombro esquerdo. - Mostre-me a vida no deserto - disse o Alquimista. - SÕ quem acha vida, pode encontrar tesouros. ComeÚaram a caminhar pelas areias, com a lua ainda brilhando sobre os dois. "NÇo sei se vou conseguir encontrar vida no deserto", pensou o rapaz. "NÇo conheÚo ainda o deserto". Quis virar-se e dizer isto ao Alquimista, mas tinha medo dele. Chegaram ao lugar de pedras, onde o rapaz havia visto os gaviÈes no cÊu; entretanto, tudo era silËncio e vento. - NÇo consigo encontrar vida no deserto - disse o rapaz. Sei que ela existe, mas nÇo consigo encontrÂ-la. - A vida atrai a vida - respondeu o Alquimista. E o rapaz entendeu. Na mesma hora soltou as rÊdeas de seu cavalo e ele saiu livremente pelas pedras e areia. O Alquimista seguia em silËncio, e o cavalo do rapaz andou por quase meia-hora. J nÇo podiam mais ver as tamareiras do oÂsis, apenas a lua gigantesca no cÊu, e as rochas brilhando com a cor prata. De repente, num lugar onde jamais havia estado antes, o rapaz notou que seu cavalo parava. - Aqui existe vida - respondeu o rapaz ao Alquimista. - NÇo conheÚo a linguagem do deserto, mas meu cavalo conhece a linguagem da vida. Desmontaram. O Alquimista nÇo disse nada. ComeÚou a olhar as pedras, caminhando devagar. De repente, ele parou, e abaixou-se com todo cuidado. Havia um buraco no chÇo, entre as pedras; o Alquimista enfiou a mÇo dentro do buraco, e depois enfiou o braÚo atÊ o ombro. Alguma coisa se mexeu l dentro, e os olhos do Alquimista - ele sÕ podia ver os olhos - se encolherem de esforÚo e tensÇo. O braÚo parecia lutar com o que estava dentro do buraco. Mas num salto que assustou o rapaz, o Alquimista retirou o braÚo e ficou imediatamente de pÊ. Sua mÇo trazia unia serpente agarrada pelo rabo. O rapaz tambÊm deu um salto, sÕ que para trÂs. A cobra debatia-se sem cessar, emitindo ruÎdos e silvos que feriam o silËncio do deserto. Era uma naja, cujo veneno podia matar um homem em poucos minutos. "Cuidado com o veneno", chegou a pensar o rapaz. Mas o Alquimista havia colocado a mÇo no buraco, e j devia ter sido mordido. Seu rosto, porÊm, estava tranqØilo. "O Alquimista tem duzentos anos", havia falado o InglËs. J devia saber como lidar com cobras no deserto. O rapaz viu quando seu companheiro foi atÊ o cavalo e puxou a longa espada em forma de meia-lua. Com ela, traÚou um cÎrculo no chÇo e colocou a cobra no meio. O animal aquietou-se imediatamente - Pode ficar tranqØilo - disse o Alquimista. - Ela nÇo vai sair dali. E vocË descobriu a vida no deserto, o sinal que eu estava precisando. - Por que isto era tÇo importante? - Porque as Pir×mides estÇo cercadas de deserto. O rapaz nÇo queria ouvir falar nas Pir×mides. Seu coraÚÇo estava pesado e triste, desde a noite anterior. Porque seguir em busca do seu tesouro, significava ter que abandonar FÂtima. - Vou guiÂ-lo pelo deserto - falou o Alquimista. - Quero ficar no oÂsis - respondeu o rapaz. - J encontrei FÂtima. E ela, para mim, vale mais que o tesouro. - FÂtima Ê uma mulher do deserto - disse o Alquimista. - Sabe que os homens devem partir, para poderem voltar. Ela j encontrou seu tesouro: vocË. Agora espera que vocË encontre o que busca. - E se eu resolver ficar? - Ser o Conselheiro do OÂsis. Tem ouro suficiente para comprar muitas ovelhas e muitos camelos. Vai casar-se com FÂtima e viverÇo felizes o primeiro ano. Aprender a amar o deserto e vai conhecer cada uma das cinqØenta mil tamareiras. Perceber como elas crescem, mostrando um mundo que muda sempre. E ir cada vez entender mais os sinais, porque o deserto Ê um mestre melhor que todos os mestres. "No segundo ano vocË se lembrar que existe um tesouro. Os sinais comeÚarÇo a falar insistentemente sobre isto, e vocË tentar ignorÂ-los. Usar seu conhecimento apenas para o bem-estar do oÂsis e dos seus habitantes. Os chefes tribais lhe agradecerÇo por isto. Os seus camelos lhe trarÇo riqueza e poder. "No terceiro ano os sinais continuarÇo a falar sobre seu tesouro e sua Lenda Pessoal. VocË vai ficar noites e noites andando pelo oÂsis, e FÂtima ser uma mulher triste, porque fez com que seu caminho fosse interrompido. Mas vocË lhe dar amor, e ser correspondido. VocË vai se lembrar que ela jamais pediu que ficasse, porque uma mulher do deserto sabe esperar seu homem. Por isso nÇo vai culpÂ-la. Mas vai andar muitas noites pelas areias do deserto, e por entre as tamareiras, pensando que talvez pudesse ter ido adiante, ter confiado mais no seu amor por FÂtima. Porque o que o manteve no oÂsis foi seu prÕprio medo de nÇo voltar nunca. E a esta altura, os sinais lhe indicarÇo que seu tesouro est enterrado para sempre. No quarto ano, os sinais o abandonarÇo, porque vocË nÇo quis ouvi-los. Os Chefes Tribais irÇo entender isto, e vocË ser destituÎdo do Conselho. A esta altura ser um rico comerciante, com muitos camelos e muitas mercadorias. Mas passar o resto dos seus dias vagando entre as tamareiras e o deserto, sabendo que nÇo cumpriu sua Lenda Pessoal, e que agora Ê tarde demais para isto. "Sem jamais compreender que o Amor nunca impede um homem de seguir sua Lenda Pessoal. Quando isto acontece, Ê porque nÇo era o verdadeiro Amor, aquele que fala a Linguagem do Mundo". O Alquimista desfez o cÎrculo no chÇo, e a cobra correu e desapareceu entre as pedras. O rapaz lembrava o mercador de cristais que sempre quis ir Á Meca, e o InglËs que buscava um Alquimista. O rapaz lembrava de uma mulher que confiou no deserto, e o deserto um dia lhe trouxe a pessoa que desejava amar. Montaram em seus cavalos, e desta vez foi o rapaz que seguiu o Alquimista. O vento trazia os ruÎdos do oÂsis, e ele tentava identificar a voz de FÂtima. Naquele dia nÇo tinha ido ao poÚo por causa da batalha. Mas esta noite, enquanto olhavam uma cobra dentro de um cÎrculo, o estranho cavaleiro com seu falcÇo no ombro havia falado de amor e de tesouros, das mulheres do deserto e da sua Lenda Pessoal. - Vou com vocË - disse o rapaz. E imediatamente sentiu paz no seu coraÚÇo. - Partimos amanhÇ antes que o sol nasÚa - foi a ßnica resposta do Alquimista. O rapaz passou a noite inteira em claro. Duas horas antes do amanhecer, acordou um dos rapazes que dormia na sua tenda, e pediu para lhe mostrar onde morava FÂtima. SaÎram juntos, e foram atÊ lÂ. Em troca, o rapaz lhe deu dinheiro para comprar uma ovelha. Depois pediu que descobrisse onde FÂtima dormia, e que lhe acordasse e dissesse que o rapaz a estava esperando. O jovem Ârabe fez isto, e em troca ganhou dinheiro para comprar outra ovelha. - Agora deixe-nos a sÕs - disse o rapaz ao jovem Ârabe, que voltou Á sua tenda para dormir, orgulhoso de haver ajudado o Conselheiro do OÂsis; e contente por ter dinheiro para comprar ovelhas. FÂtima apareceu na porta da tenda. Os dois saÎram para andar entre as tamareiras. O rapaz sabia que era contra a TradiÚÇo, mas isto nÇo tinha nenhuma import×ncia agora. - Vou partir - disse. E quero que saiba que vou voltar. Eu te amo porque... - NÇo diga nada - interrompeu FÂtima. - Ama-se porque se ama. NÇo h qualquer razÇo para amar. Mas o rapaz continuou: - Eu te amo porque tive um sonho, encontrei um rei, vendi cristais, cruzei o deserto, os clÇs declararam guerra, e estive num poÚo para saber onde morava um Alquimista. Eu te amo porque todo o Universo conspirou para que eu chegasse atÊ vocË. - Os dois se abraÚaram. Era a primeira vez que um corpo tocava no outro. - Voltarei - repetiu o rapaz. - Antes eu olhava o deserto com desejo - disse FÂtima. Agora ser com esperanÚa. Meu pai um dia partiu, mas voltou para minha mÇe, e continua voltando sempre. E nÇo disseram mais nada. Andaram um pouco entre as tamareiras, e o rapaz a deixou na porta da tenda. - Voltarei como seu pai voltou para a sua mÇe - disse. Reparou que os olhos de FÂtima estavam cheios d'Âgua. - VocË chora? - Sou uma mulher do deserto - disse ela, escondendo o rosto. - Mas acima de tudo, sou uma mulher. FÂtima entrou na tenda. Daqui a pouco o sol ia aparecer. Quando o dia chegasse, ela ia sair e fazer aquilo que havia feito durante tantos anos; mas tudo havia mudado. O rapaz j nÇo estava mais no oÂsis, e o oÂsis nÇo teria mais o significado que tinha atÊ pouco tempo antes. NÇo seria mais o lugar com cinqØenta mil tamareiras e trezentos poÚos, onde os peregrinos chegavam contentes depois de uma longa viagem. O oÂsis, daquele dia em diante, seria um lugar vazio para ela. A partir daquele dia, o deserto ia ser mais importante. Iria olhar para ele sempre, tentando saber qual estrela o rapaz estava seguindo em busca do tesouro. Haveria de mandar seus beijos pelo vento, na esperanÚa de que ele tocasse o rosto do rapaz, e lhe contasse que estava viva, esperando por ele, como uma mulher espera um homem de coragem, que segue em busca de sonhos e tesouros. A partir daquele dia, o deserto ia ser apenas uma coisa: a esperanÚa de sua volta. - NÇo pense no que ficou para trÂs - disse o Alquimista, quando comeÚaram a cavalgar pelas areias do deserto. - Tudo est gravado na Alma do Mundo, e ali permanecer para sempre. - Os homens sonham mais com a volta do que com a partida - disse o rapaz, que j estava se acostumando de novo com o silËncio do deserto. - Se o que vocË encontrou Ê feito de matÊria pura, jamais apodrecerÂ. E vocË poder voltar um dia. Se foi apenas um momento de luz, como a explosÇo de uma estrela, entÇo nÇo vai encontrar nada quando voltar. Mas ter visto uma explosÇo de luz. E sÕ isto j valeu a pena. O homem falava em linguagem de alquimia. Mas o rapaz sabia que ele estava se referindo Á FÂtima. Era difÎcil nÇo pensar no que havia ficado para trÂs. O deserto, com sua paisagem quase sempre igual, costumava encher-se de sonhos. O rapaz ainda via as tamareiras, os poÚos, e o rosto da mulher amada. Via o InglËs com seu laboratÕrio, e o cameleiro que era um mestre e nÇo sabia. "Talvez o Alquimista jamais tenha amado", pensou o rapaz. O Alquimista cavalgava na sua frente, com o falcÇo nos ombros. O falcÇo conhecia bem a linguagem do deserto, e quando paravam, ele saÎa do ombro do Alquimista e voava em busca de alimento. No primeiro dia trouxe uma lebre. No segundo dia trouxe dois pÂssaros. De noite, estendiam seus cobertores e nÇo acendiam fogueiras. As noites do deserto eram frias, e foram ficando escuras Á medida que a lua comeÚou a diminuir no cÊu. Durante uma semana andaram em silËncio, conversando apenas sobre as precauÚÈes necessÂrias para evitar os combates entre os clÇs. A guerra continuava, e o vento Ás vezes trazia o cheiro adocicado de sangue. Alguma batalha havia sido travada por perto, e o vento recordava ao rapaz que havia a Linguagem dos Sinais, sempre pronta para mostrar o que seus olhos nÇo conseguiam ver. Quando completaram sete dias de viagem, o Alquimista resolveu acampar mais cedo do que de costume. O falcÇo saiu em busca de caÚa, e ele tirou o cantil de Âgua e ofereceu ao rapaz. - VocË agora est quase no final da viagem - disse o Alquimista. - Meus parabÊns por haver seguido sua Lenda Pessoal. - E vocË est me guiando em silËncio - disse o rapaz. - Pensei que ia me ensinar aquilo que sabe. Faz algum tempo que estive no deserto com um homem que tinha livros de Alquimia. Mas nÇo consegui aprender nada. - SÕ existe uma maneira de aprender - respondeu o Alquimista - ê atravÊs da aÚÇo. Tudo que vocË precisava saber, a viagem lhe ensinou. Falta apenas uma coisa. O rapaz quis saber o que era, mas o Alquimista manteve os olhos fixos no horizonte, esperando pela volta do falcÇo. - Por que o chamam de Alquimista? - Porque sou. - E o que havia de errado com os outros alquimistas, que buscaram ouro e nÇo conseguiram? - Buscavam apenas ouro - respondeu seu companheiro. - Buscavam o tesouro de sua Lenda Pessoal, sem desejarem viver a prÕpria Lenda. - O que me falta saber? - insistiu o rapaz. Mas o Alquimista continuou olhando o horizonte. Depois de algum tempo o falcÇo retornou com a comida. Cavaram um buraco e acenderam a fogueira dentro dele, para que ninguÊm pudesse ver a luz das chamas. - Sou um Alquimista porque sou um Alquimista - disse ele, enquanto preparavam a comida. - Aprendi a ciËncia de meus avÕs, que aprenderam de seus avÕs, e assim atÊ a criaÚÇo do mundo. Naquela Êpoca, toda a ciËncia da Grande Obra podia ser escrita numa simples esmeralda. Mas os homens nÇo deram import×ncia Ás coisas simples, e comeÚaram a escrever tratados, interpretaÚÈes, e estudos filosÕficos. ComeÚaram tambÊm a dizer que sabiam melhor o caminho que os outros. "Mas a TÂboa da Esmeralda continua viva atÊ hoje". - O que estava escrito na TÂboa da Esmeralda? - quis saber o rapaz. O Alquimista comeÚou a desenhar na areia, e nÇo demorou mais do que cinco minutos. Enquanto ele desenhava, o rapaz lembrou-se do velho rei, e da praÚa onde haviam se encontrado um dia; parecia que tinham se passado muitos e muitos anos. - Isto estava escrito na TÂboa da Esmeralda - disse o Alquimista, quando acabou de escrever. O rapaz aproximou-se e leu as palavras na areia. - ê um cÕdigo - disse o rapaz, um pouco decepcionado com a TÂboa da Esmeralda. - Parece com os livros do InglËs. - NÇo - respondeu o Alquimista. - ê como o vÆo dos gaviÈes; nÇo deve ser compreendida simplesmente pela razÇo. A TÂboa da Esmeralda Ê uma passagem direta para a Alma do Mundo. "Os sÂbios entenderam que este mundo natural Ê apenas uma imagem e uma cÕpia do ParaÎso. A simples existËncia deste mundo Ê a garantia de que existe um mundo mais perfeito que ele. Deus o criou para que, atravÊs das coisas visÎveis, os homens pudessem compreender seus ensinamentos espirituais, e as maravilhas de sua sabedoria. Isto Ê que eu chamo de AÚÇo". - Devo entender a TÂboa da Esmeralda? - perguntou o rapaz. - "Talvez, se vocË estivesse num laboratÕrio de Alquimia, agora seria o momento certo para estudar a melhor maneira de entender a TÂboa da Esmeralda. Entretanto, vocË est no Deserto. EntÇo mergulhe no deserto. Ele serve para compreender o mundo tanto como qualquer outra coisa sobre a face da terra. VocË nem precisa de entender o deserto: basta contemplar um simples grÇo de areia, e ver nele todas as maravilhas da CriaÚÇo". - Como faÚo para mergulhar no deserto? - Escute seu coraÚÇo. Ele conhece todas as coisas, porque veio da Alma do Mundo, e um dia retornar para ela. Andaram em silËncio mais dois dias. O Alquimista estava muito mais cauteloso, porque se aproximavam da zona de combates mais violentos. E o rapaz procurava escutar seu coraÚÇo. Era um coraÚÇo difÎcil; antes estava acostumado a partir sempre, e agora queria chegar a todo custo. ás vezes, seu coraÚÇo ficava muitas horas contando histÕrias de saudades, outras vezes se emocionava com o nascer do sol no deserto, e fazia o rapaz chorar escondido. O coraÚÇo batia mais rÂpido quando falava para o rapaz sobre o tesouro e ficava mais vagaroso quando os olhos do rapaz se perdiam no horizonte sem fim do deserto. Mas nunca estava em silËncio, mesmo que o rapaz nÇo trocasse uma palavra com o Alquimista. - Por que temos que escutar o coraÚÇo? - perguntou o rapaz quando acamparam aquele dia. - Porque, onde ele estiver, Ê onde estar o seu tesouro. - Meu coraÚÇo Ê agitado - disse o rapaz. - Tem sonhos, se emociona, e est apaixonado por uma mulher do deserto. Ele me pede coisas e nÇo me deixa dormir muitas noites, quando penso nela. - ê bom. Seu coraÚÇo est vivo. Continue a ouvir o que ele tem para dizer. Nos trËs dias seguintes os dois passaram por alguns guerreiros, e viram outros guerreiros no horizonte. O coraÚÇo do rapaz comeÚou a falar sobre o medo. Contava para o rapaz histÕrias que tinha ouvido da Alma do Mundo, histÕrias de homens que foram em busca de seus tesouros e jamais o encontraram. ás vezes assustava o rapaz com o pensamento de que poderia nÇo conseguir o tesouro, ou poderia morrer no deserto. Outras vezes dizia para o rapaz que j estava satisfeito, que j havia encontrado um amor e muitas moedas de ouro. - Meu coraÚÇo Ê traiÚoeiro - disse o rapaz ao Alquimista, quando eles pararam para descansar um pouco os cavalos. - NÇo quer que eu continue. - Isto Ê bom - respondeu o Alquimista. - Prova que seu coraÚÇo est vivo. ê natural ter medo de trocar por um sonho tudo aquilo que j se conseguiu. - EntÇo, para que devo escutar meu coraÚÇo? - Porque vocË nÇo vai conseguir jamais mantË-lo calado. E mesmo que finja nÇo escutar o que ele diz, ele estar dentro do seu peito, repetindo sempre o que pensa sobre a vida e o mundo. - Mesmo que ele seja traiÚoeiro? - A traiÚÇo Ê o golpe que vocË nÇo espera. Se vocË conhecer bem seu coraÚÇo, ele jamais conseguir isto. Porque vocË conhecer seus sonhos e seus desejos, e saber lidar com eles. "NinguÊm consegue fugir do seu coraÚÇo. Por isso Ê melhor escutar o que ele fala. Para que jamais venha um golpe que vocË nÇo espera". O rapaz continuou a escutar seu coraÚÇo, enquanto caminhavam pelo deserto. Passou a conhecer suas artimanhas e seus truques, e passou a aceitÂ-lo como era. EntÇo o rapaz deixou de ter medo, e deixou de ter vontade de voltar, porque certa tarde o seu coraÚÇo lhe disse que estava contente. "Mesmo que eu reclame um pouco", dizia seu coraÚÇo, "Ê porque sou um coraÚÇo de homem, e os coraÚÈes de homens sÇo assim. TËm medo de realizar seus maiores sonhos, porque acham que nÇo o merecem, ou nÇo vÇo consegui-los. NÕs, os coraÚÈes, morremos de medo sÕ de pensar em amores que partiram para sempre, em momentos que poderiam ter sido bons e que nÇo foram, em tesouros que poderiam ter sido descobertos e ficaram para sempre escondidos na areia. Porque quando isto acontece, terminamos sofrendo muito". - Meu coraÚÇo tem medo de sofrer - disse o rapaz para o Alquimista, uma noite em que olhavam o cÊu sem lua. - Diga para ele que o medo de sofrer Ê pior do que o prÕprio sofrimento. E que nenhum coraÚÇo jamais sofreu quando foi em busca de seus sonhos, porque cada momento de busca Ê um momento de encontro com Deus e com a Eternidade. "Cada momento de busca Ê um momento de encontro", disse o rapaz ao seu coraÚÇo. "Enquanto procurei meu tesouro, todos os dias foram dias luminosos, porque eu sabia que cada hora fazia parte do sonho de encontrar. Enquanto procurei este meu tesouro, descobri no caminho coisas que jamais teria sonhado encontrar, se nÇo tivesse tido a coragem de tentar coisas impossÎveis aos pastores". EntÇo seu coraÚÇo ficou quieto por uma tarde inteira. De noite, o rapaz dormiu tranqØilo, e quando acordou, o seu coraÚÇo comeÚou a lhe contar as coisas da Alma do Mundo. Disse que todo homem feliz era um homem que trazia Deus dentro de si. E que a felicidade poderia ser encontrada num simples grÇo de areia do deserto, como o Alquimista havia falado. Porque um grÇo de areia Ê um momento da CriaÚÇo, e o Universo demorou milhares de milhÈes de anos para criÂ-lo. "Cada homem na face da Terra tem um tesouro que est esperando por ele", disse seu coraÚÇo. NÕs, os coraÚÈes, costumamos falar pouco destes tesouros, porque os homens j nÇo querem mais encontrÂ-los. SÕ falamos dele para as crianÚas. Depois deixamos que a vida encaminhe cada um em direÚÇo ao seu destino. Mas, infelizmente, poucos seguem o caminho que lhes est traÚado, e que Ê o caminho da Lenda Pessoal, e da felicidade. Acham o mundo uma coisa ameaÚadora - e por causa disto o mundo se torna uma coisa ameaÚadora. "EntÇo nÕs, os coraÚÈes, vamos falando cada vez mais baixo, mas nÇo nos calamos nunca. E torcemos para que nossas palavras nÇo sejam ouvidas: nÇo queremos que os homens sofram porque nÇo seguiram seus coraÚÈes". - Por que os coraÚÈes nÇo contam aos homens que devem continuar seguindo seus sonhos? - perguntou o rapaz ao Alquimista. - Porque, neste caso, o coraÚÇo Ê o que sofre mais. E os coraÚÈes nÇo gostam de sofrer. O rapaz entendeu seu coraÚÇo a partir daquele dia. Pediu que nunca mais o deixasse. Pediu que, quando estivesse longe de seus sonhos, o coraÚÇo apertasse no peito e desse o sinal de alarme. O rapaz jurou que sempre que escutasse este sinal, tambÊm o seguiria. Naquela noite conversou tudo com o Alquimista. E o Alquimista entendeu que o coraÚÇo do rapaz havia voltado para a Alma do Mundo . - O que faÚo agora? - perguntou o rapaz. - Siga em direÚÇo Ás Pir×mides - disse o Alquimista. - E continue atento aos sinais. Seu coraÚÇo jÂ Ê capaz de lhe mostrar o tesouro. - Era isto que estava faltando saber? - NÇo. - respondeu o Alquimista. - O que est faltando saber Ê o seguinte: "Sempre antes de realizar um sonho, a Alma do Mundo resolve testar tudo aquilo que foi aprendido durante a caminhada. Ela faz isto nÇo porque seja mÂ, mas para que possamos, junto com o nosso sonho, conquistar tambÊm as liÚÈes que aprendemos seguindo em direÚÇo a ele. ê o momento em que a maior parte das pessoas desiste. ê o que chamamos, em linguagem do deserto, de `morrer de sede quando as tamareiras j apareceram no horizonte' ". "Uma busca comeÚa sempre com a Sorte de Principiante. E termina sempre com a Prova do Conquistador". O rapaz lembrou-se de um velho provÊrbio de sua terra. Dizia que a hora mais escura era a que vinha antes do sol nascer. No dia seguinte apareceu o primeiro sinal concreto de perigo. TrËs guerreiros se aproximaram e perguntaram o que os dois estavam fazendo por ali. - Vim caÚar com o meu falcÇo - respondeu o Alquimista. - Precisamos revistÂ-los para ver se nÇo levam armas - disse um dos guerreiros. O Alquimista desceu devagar de seu cavalo. O rapaz fez o mesmo. - Para quË tanto dinheiro? - perguntou o guerreiro, quando viu a bolsa do rapaz. - Para chegar ao Egito - disse ele. O guarda que estava revistando o Alquimista encontrou um pequeno frasco de cristal cheio de lÎquido, e um ovo de vidro amarelado, pouco maior que o ovo de uma galinha. - Que sÇo estas coisas? - perguntou o guarda. - ê a Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida. ê a grande obra dos Alquimistas. Quem tomar este elixir jamais ficar doente, e uma lasca desta pedra transforma qualquer metal em ouro. Os guardas riram pra valer, e o Alquimista riu com eles. Tinham achado a resposta muito engraÚada, e os deixaram partir sem maiores contratempos, com todos os seus pertences. - VocË est louco? - perguntou o rapaz ao Alquimista, quando j haviam se distanciado bastante. - Para que vocË fez isto? - Para mostrar a vocË uma simples lei do mundo - respondeu o Alquimista. - Quando temos os grandes tesouros diante de nÕs, nunca percebemos. E sabe por quË? Porque os homens nÇo acreditam em tesouros. Continuaram andando pelo deserto. A cada dia que passava, o coraÚÇo do rapaz ia ficando mais silencioso. J nÇo queria saber das coisas passadas ou das coisas futuras; contentava-se em contemplar tambÊm o deserto, e beber junto com o rapaz da Alma do Mundo. Ele e seu coraÚÇo tornaram-se grandes amigos - um passou a ser incapaz de trair o outro. Quando o coraÚÇo falava, era para dar estÎmulo e forÚa ao rapaz, que Ás vezes achava terrivelmente maÚante os dias de silËncio. O coraÚÇo contou-lhe pela primeira vez suas grandes qualidades: sua coragem ao abandonar as ovelhas, ao viver sua Lenda Pessoal, e seu entusiasmo na loja de cristais. Contou-lhe tambÊm mais uma coisa, que o rapaz nunca havia notado: os perigos que passaram perto e que ele nunca tinha percebido. Seu coraÚÇo disse que certa vez havia escondido a pistola que ele havia roubado do pai, pois havia uma grande chance de que se ferisse com ela. E lembrou um dia que o rapaz havia passado mal em pleno campo, vomitado, e depois dormido por muito tempo: haviam dois assaltantes mais adiante, que estavam planejando roubar suas ovelhas, e assassinÂ-lo. Mas como o rapaz nÇo aparecia, resolveram ir embora, achando que ele tinha mudado de rota. - Os coraÚÈes sempre ajudam os homens? - perguntou o rapaz ao Alquimista. - SÕ os que vivem sua Lenda Pessoal. Mas ajudam muito as crianÚas, os bËbados, e os velhos. - Quer dizer entÇo que nÇo h perigo? - Quer dizer apenas que os coraÚÈes se esforÚam ao mÂximo - respondeu o Alquimista. Certa tarde passaram pelo acampamento de um dos clÇs. Haviam Ârabes em vistosas roupas brancas, com armas ensilhadas em todos os cantos. Os homens fumavam narguilÊ e conversavam sobre os combates. NinguÊm prestou maior atenÚÇo aos dois viajantes. - NÇo h qualquer perigo - disse o rapaz, quando j tinham se afastado um pouco do acampamento. O Alquimista ficou furioso. - Confie em seu coraÚÇo - disse, mas nÇo se esqueÚa de que vocË est no deserto. Quando os homens estÇo em guerra, a Alma do Mundo tambÊm sente os gritos de combate. NinguÊm deixa de sofrer as conseqØËncias de cada coisa que se passa debaixo do sol. "Tudo Ê uma coisa ßnica", pensou o rapaz. E como se o deserto quisesse mostrar que o velho Alquimista estava certo, dois cavaleiros surgiram por detrÂs dos viajantes. - NÇo podem seguir adiante - disse um deles. - VocËs estÇo nas areias onde os combates sÇo travados. - NÇo vou muito longe - respondeu o Alquimista, olhando fundo nos olhos dos guerreiros. Eles ficaram quietos por alguns minutos, e depois concordaram com a viagem dos dois. O rapaz assistiu aquilo tudo fascinado. - VocË dominou os guardas com o olhar - comentou ele. - Os olhos mostram a forÚa da alma - respondeu o Alquimista. Era verdade, pensou o rapaz. Havia percebido que, no meio da multidÇo de soldados no acampamento, um deles estava olhando fixo para os dois. E estava tÇo distante, que nÇo dava sequer para ver direito sua face. Mas o rapaz tinha certeza de que estava olhando para eles. Finalmente, quando comeÚaram a cruzar uma montanha que se estendia por todo o horizonte, o Alquimista disse que faltavam dois dias para chegarem atÊ Ás Pir×mides. - Se vamos nos separar logo - respondeu o rapaz - me ensine Alquimia. - VocË j sabe. ê penetrar na Alma do Mundo, e descobrir o tesouro que ela reservou para nÕs. - NÇo Ê isto que quero saber. Falo de transformar chumbo em ouro. O Alquimista respeitou o silËncio do deserto, e sÕ respondeu ao rapaz quando pararam para comer. - Tudo no Universo evolui - disse ele. - E para os sÂbios, o ouro Ê o metal mais evoluÎdo. NÇo pergunte porquË; nÇo sei. Sei apenas que a TradiÚÇo est sempre certa. "Os homens Ê que nÇo interpretaram bem as palavras dos sÂbios. E ao invÊs de sÎmbolo de evoluÚÇo, o ouro passou a ser o sinal das guerras. - As coisas falam muitas linguagens - disse o rapaz. - Vi quando o relincho de camelo era apenas um relincho, depois passou a ser sinal de perigo, e finalmente tornou- se de novo um relincho. Mas calou-se. O Alquimista devia saber tudo aquilo. - Conheci verdadeiros alquimistas - continuou. - Se trancavam no laboratÕrio e tentavam evoluir como o ouro; descobriam a Pedra Filosofal. Porque haviam entendido que quando uma coisa evolui, evolui tambÊm tudo que est a sua volta. "Outros conseguiram a pedra por acidente. J tinham o dom, suas almas estavam mais despertas que a das outras pessoas. Mas estes nÇo contam, porque sÇo raros. "Outros, enfim, buscavam apenas o ouro. Estes jamais descobriram o segredo. Esqueceram-se de que o chumbo, o cobre, o ferro, tambÊm tËm sua Lenda Pessoal para cumprir. Quem interfere na Lenda Pessoal dos outros, nunca descobrir a sua". As palavras do Alquimista soaram como uma maldiÚÇo. Ele abaixou-se e pegou uma concha no solo do deserto. - Isto um dia j foi um mar - disse. - J tinha reparado - respondeu o rapaz. O Alquimista pediu ao rapaz para colocar a concha no ouvido. Ele tinha feito isto muitas vezes quando era crianÚa, e escutou o barulho do mar. - O mar continua dentro desta concha, porque Ê sua Lenda Pessoal. E jamais a abandonarÂ, atÊ que o deserto se cubra novamente de Âgua. Depois montaram em seus cavalos, e seguiram em direÚÇo Ás Pir×mides do Egito. O sol tinha comeÚado a descer quando o coraÚÇo do rapaz deu sinal de perigo. Estavam no meio de gigantescas dunas, e o rapaz olhou o Alquimista, mas este parecia nÇo haver notado nada. Cinco minutos depois o rapaz percebeu dois cavaleiros a sua frente, as silhuetas cortadas contra o sol. Antes que pudesse falar com o Alquimista, os dois cavaleiros se transformaram em dez, depois em cem, atÊ que as gigantescas dunas ficaram cobertas deles. Eram guerreiros vestidos de azul, com uma tiara negra sobre o turbante. Os rostos estavam cobertos por outro vÊu azul, deixando apenas os olhos de fora. Mesmo distante, os olhos mostravam a forÚa de suas almas. E os olhos falavam em morte. Levaram os dois para um acampamento militar nas imediaÚÈes. Um soldado empurrou o rapaz e o Alquimista para dentro de uma tenda. Era uma tenda diferente das que havia conhecido no oÂsis; ali estava um comandante reunido com seu estado-maior. - SÇo os espiÈes - disse um dos homens. - Somos apenas viajantes - respondeu o Alquimista. - VocËs foram vistos no acampamento inimigo h trËs dias atrÂs. E conversaram com um dos guerreiros. - Sou um homem que caminha pelo deserto e conhece as estrelas - disse o Alquimista. NÇo tenho informaÚÈes de tropas, ou o movimento dos clÇs. Apenas guiava meu amigo atÊ aqui. - Quem Ê seu amigo? perguntou o comandante. - Um Alquimista - disse o Alquimista. - Conhece os poderes da natureza. E deseja mostrar ao comandante sua capacidade extraordinÂria. O rapaz ouvia em silËncio. E com medo. - O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira? - disse outro homem. - Trouxe dinheiro para oferecer a seu clÇ - respondeu o Alquimista, antes que o rapaz dissesse qualquer palavra. E pegando a bolsa do rapaz, entregou as moedas de ouro ao general. O Ârabe aceitou em silËncio. Dava para comprar muitas armas. - O que Ê um Alquimista? - perguntou, finalmente. - Um homem que conhece a natureza e o mundo. Se ele quisesse, destruÎa este acampamento apenas com a forÚa do vento. Os homens riram. Estavam acostumados com a forÚa da guerra, e o vento nÇo detÊm um golpe mortal. Dentro do peito de cada um, porÊm, seus coraÚÈes apertaram. Eram homens do deserto e tinham medo dos feiticeiros. - Quero ver - disse o general. - Precisamos de trËs dias - respondeu o Alquimista. - E ele vai se transformar em vento, apenas para mostrar a forÚa de seu poder. Se nÇo conseguir, nÕs lhe oferecemos humildemente nossas vidas, pela honra de seu clÇ. - NÇo pode me oferecer o que jÂ Ê meu - disse, arrogante, o general. Mas concedeu os trËs dias aos viajantes. O rapaz estava paralisado de terror. Saiu da tenda porque o Alquimista lhe segurou os braÚos. - NÇo deixe que eles percebam seu medo - disse o Alquimista. - SÇo homens corajosos, e desprezam os covardes. O rapaz, porÊm, estava sem voz. SÕ conseguiu falar depois de algum tempo, enquanto caminhavam pelo meio do acampamento. NÇo havia necessidade de prisÇo: os Ârabes apenas tiraram seus cavalos. E mais uma vez o mundo mostrou suas muitas linguagens: o deserto, antes um terreno livre e sem fim, era agora uma muralha intransponÎvel. - VocË deu todo o meu tesouro! - disse o rapaz. - Tudo que eu ganhei em toda a minha vida! - E para que lhe adiantaria isto, se tivesse que morrer? - respondeu, o Alquimista. - Seu dinheiro o salvou por trËs dias. Poucas vezes o dinheiro serve para adiar a morte. Mas o rapaz estava apavorado demais para ouvir palavras sÂbias. NÇo sabia como transformar-se em vento. NÇo era um Alquimista. O Alquimista pediu ch a um guerreiro, e colocou um pouco nos pulsos do rapaz. Uma onda de tranqØilidade encheu seu corpo, enquanto o Alquimista dizia algumas palavras que ele nÇo conseguia compreender. - NÇo se entregue ao desespero - disse o Alquimista, com uma voz estranhamente doce. - Isto faz com que vocË nÇo consiga conversar com seu coraÚÇo. - Mas eu nÇo sei transformar-me em vento. - Quem vive sua Lenda Pessoal, sabe tudo que precisa saber. SÕ uma coisa torna um sonho impossÎvel: o medo de fracassar. - NÇo tenho medo de fracassar. Apenas nÇo sei transformar-me em vento. - Pois ter que aprender. Sua vida depende disto. - E se eu nÇo conseguir? - Vai morrer enquanto vivia sua Lenda Pessoal. ê muito melhor do que morrer como milhÈes de pessoas, que jamais souberam que a Lenda Pessoal existia. "Entretanto, nÇo se preocupe. Geralmente a morte faz com que as pessoas fiquem mais sensÎveis Á vida." O primeiro dia se passou. Houve uma grande batalha nas imediaÚÈes, e vÂrios feridos foram trazidos para o acampamento militar. "Nada muda com a morte", pensava o rapaz. Os guerreiros que morriam eram substituÎdos por outros, e a vida continuava. - Poderias ter morrido mais tarde, meu amigo - disse o guarda para o corpo de um companheiro seu. - Poderias ter morrido quando chegasse a paz. Mas irias terminar morrendo de qualquer jeito. No final do dia, o rapaz foi procurar o Alquimista. Estava levando o falcÇo para o deserto. - NÇo sei transformar-me em vento - repetiu o rapaz. - Lembre-se do que eu lhe disse: de que o mundo Ê apenas a parte visÎvel de Deus. De que a Alquimia Ê trazer para o plano material a perfeiÚÇo espiritual. - O que vocË faz? - Alimento meu falcÇo. - Se eu nÇo conseguir transformar-me em vento, nÕs vamos morrer - disse o rapaz. - Para que alimentar o falcÇo? - Quem vai morrer Ê vocË - disse o Alquimista. - Eu sei transformar-me em vento. No segundo dia o rapaz foi para o alto de uma rocha que ficava perto do acampamento. As sentinelas o deixaram passar; j ouviram falar do bruxo que se transformava em vento, e nÇo queriam chegar perto dele. AlÊm disso, o deserto era uma grande e intransponÎvel muralha. Ficou o resto da tarde do segundo dia olhando o deserto. Escutou seu coraÚÇo. E o deserto escutou seu medo. Ambos falavam a mesma lÎngua. No terceiro dia o general reuniu-se com os principais comandantes. - Vamos ver o garoto que se transforma em vento - disse o General ao Alquimista. - Vamos ver - respondeu o Alquimista. O rapaz os conduziu atÊ o lugar onde havia estado no dia anterior. EntÇo pediu que todos se sentassem. - Vai demorar um pouco - disse o rapaz. - NÇo temos pressa - respondeu o General. - Somos homens do deserto. O rapaz comeÚou a olhar o horizonte a sua frente. Haviam montanhas ao longe, haviam dunas, rochas e plantas rasteiras que insistiam em viver onde a sobrevivËncia era impossÎvel. Ali estava o deserto, que ele havia percorrido durante tantos meses, e que, mesmo assim, sÕ conhecia uma parte muito pequena. Nesta pequena parte ele havia encontrado ingleses, caravanas, guerras de clÇs, e um oÂsis com cinqØenta mil tamareiras e trezentos poÚos. - O que vocË quer aqui hoje? - perguntou o deserto. - J nÇo nos contemplamos o suficiente ontem? - Em algum ponto vocË guarda a pessoa que eu amo - disse o rapaz. - EntÇo, quando olho suas areias contemplo tambÊm a ela. Quero voltar a ela e preciso de sua ajuda para transformar-me em vento. - O que Ê o amor? - perguntou o deserto. - O amor Ê quando o falcÇo voa sobre suas areias. Porque para ele vocË Ê um campo verde, e ele nunca voltou sem caÚa. Ele conhece suas rochas, suas dunas, e suas montanhas, e vocË Ê generoso com ele. - O bico do falcÇo tira pedaÚos de mim - disse o deserto. - Durante anos eu cultivo sua caÚa, alimento com a pouca Âgua que tenho, mostro onde est a comida. E um dia, desce o falcÇo do cÊu, justamente quando eu ia sentir o carinho da caÚa sobre minhas areias. Ele carrega aquilo que eu criei. - Mas foi para isto que vocË criou a caÚa - respondeu o rapaz. - Para alimentar o falcÇo. E o falcÇo alimentar o homem. E o homem entÇo alimentar um dia tuas areias, de onde a caÚa tornar a surgir. Assim move-se o mundo. - ê isto o amor? - ê isto o amor. ê o que faz a caÚa transformar-se em falcÇo, o falcÇo em homem, e o homem de novo em deserto. ê isto que faz o chumbo transformar-se em ouro; e o ouro voltar a esconder-se sob a terra. - NÇo entendo suas palavras - disse o deserto. - EntÇo entenda que em algum lugar de suas areias, uma mulher me espera. E para isto, tenho que transformar-me em vento. O deserto ficou em silËncio por alguns instantes. - Eu lhe dou minhas areias para que o vento possa soprar. Mas sozinho, nÇo posso fazer nada. PeÚa ajuda ao vento. Uma pequena brisa comeÚou a soprar. Os comandantes olhavam o rapaz ao longe, falando uma linguagem que eles nÇo conheciam. O Alquimista sorria. O vento chegou perto do rapaz e tocou seu rosto. Havia escutado sua conversa com o deserto, porque os ventos sempre conhecem tudo. Percorriam o mundo sem um lugar onde nascer e sem um lugar onde morrer. - Me ajude - disse o rapaz ao vento. - Certo dia escutei em vocË a voz da minha amada. - Quem lhe ensinou a falar a linguagem do deserto e do vento? - Meu coraÚÇo - respondeu o rapaz. O vento tinha muitos nomes. Ali ele era chamado de siroco, porque os Ârabes acreditavam que ele vinha das terras cobertas de Âgua, onde habitavam homens negros. Na terra distante de onde vinha o rapaz, eles o chamavam de Levante, porque acreditavam que trazia as areias do deserto e os gritos de guerra dos mouros. Talvez num lugar mais distante dos campos de ovelhas, os homens pensassem que o vento nascia em Andaluzia. Mas o vento nÇo vinha de lugar nenhum, e nÇo ia para lugar nenhum, e por isso era mais forte que o deserto. Um dia eles poderiam plantar Ârvores no deserto, e atÊ mesmo criar ovelhas, mas jamais iriam conseguir dominar o vento. - VocË nÇo pode ser o vento - disse o vento. - Somos de naturezas diferentes. - NÇo Ê verdade - disse o rapaz. - Conheci os segredos da Alquimia, enquanto vagava o mundo com vocË. Tenho em mim os ventos, os desertos, os oceanos, as estrelas, e tudo que foi criado no Universo. Fomos feitos pela mesma MÇo, e temos a mesma Alma. Quero ser como vocË, penetrar em todos os cantos, atravessar os mares, tirar a areia que cobre meu tesouro, trazer para perto a voz de minha amada. - Ouvi sua conversa com o Alquimista outro dia - disse o vento. - Ele falou que cada coisa tem sua Lenda Pessoal. As pessoas nÇo podem se transformar em vento. - Me ensine a ser vento por alguns instantes, - disse o rapaz. - Para que possamos conversar sobre as possibilidades ilimitadas dos homens e dos ventos. O vento era curioso, e aquilo era uma coisa que ele nÇo conhecia. Gostaria de conversar sobre aquele assunto, mas nÇo sabia como transformar homens em vento. E olha que ele conhecia tanta coisa! ConstruÎa desertos, afundava navios, derrubava florestas inteiras, e passeava por cidades cheias de mßsica e de ruÎdos estranhos. Achava que era ilimitado, e no entanto ali estava um rapaz dizendo que ainda havia mais coisas que um vento podia fazer. - ê isto que chamam de Amor - disse o rapaz, ao ver que o vento estava quase cedendo ao seu pedido. - Quando se ama Ê que se consegue ser qualquer coisa da CriaÚÇo. Quando se ama nÇo temos necessidade nenhuma de entender o que acontece, porque tudo passa a acontecer dentro de nÕs, e os homens podem se transformar em vento. Desde que os ventos ajudem, Ê claro. O vento era muito orgulhoso, e ficou irritado com o que o rapaz dizia. ComeÚou a soprar com mais velocidade, levantando as areias do deserto. Mas finalmente teve que reconhecer que, mesmo havendo percorrido o mundo inteiro, nÇo sabia como transformar homens em ventos. E nÇo conhecia o Amor. - Enquanto passeava pelo mundo, notei que muitas pessoas falavam de amor olhando para o cÊu - disse o vento, furioso por ter que aceitar suas limitaÚÈes. - Talvez seja melhor perguntar ao cÊu. - EntÇo me ajude - disse o rapaz. - Encha este lugar de poeira, para que eu possa olhar o sol sem ficar cego. O vento entÇo soprou com muita forÚa, e o cÊu ficou cheio de areia, deixando apenas um disco dourado no lugar do sol. No acampamento estava ficando difÎcil de enxergar. Os homens do deserto j conheciam aquele vento. Chamava-se Simum, e era pior que uma tempestade no mar - porque eles nÇo conheciam o mar. Os cavalos relinchavam, e as armas comeÚaram a ficar cobertas de areia. No rochedo, um dos comandantes virou-se para o general, e disse: - Talvez seja melhor pararmos com isto. Eles j quase nÇo podiam enxergar o rapaz. Os rostos estavam cobertos pelos lenÚos azuis, e os olhos agora significavam apenas espanto. - Vamos parar com isto - insistiu outro comandante. - Quero ver a grandeza de Allah - disse com respeito o general. Quero ver como os homens se transformam em vento. Mas anotou mentalmente o nome dos dois homens que haviam tido medo. Assim que o vento parasse, ia destituÎ-los de seus comandos, porque os homens do deserto nÇo sentem medo. O vento me disse que vocË conhece o Amor - disse o rapaz ao Sol. - Se vocË conhece o Amor, conhece tambÊm a Alma do Mundo, que Ê feita de Amor. - Daqui de onde estou - disse o sol - posso ver a Alma do Mundo. Ela se comunica com minha alma, e nÕs, juntos, fazemos as plantas crescerem e as ovelhas caminharem em busca de sombra. Daqui de onde estou - e estou muito longe do mundo - aprendi a amar. Sei que, se eu me aproximar um pouco mais da Terra, tudo que est nela morrerÂ, e a Alma do Mundo deixar de existir. EntÇo nos contemplamos e nos queremos, e eu lhe dou vida e calor, e ela me d uma razÇo para viver. - VocË conhece o Amor - disse o rapaz. - E conheÚo a Alma do Mundo, porque conversamos muito nesta viagem sem fim pelo Universo. Ela me fala que seu maior problema Ê que atÊ hoje, sÕ os minerais e os vegetais entenderam que tudo Ê uma coisa sÕ. E para isto, nÇo precisa que o ferro seja igual ao cobre, e que o cobre seja igual ao ouro. Cada um cumpre sua funÚÇo exata nesta coisa ßnica, e tudo seria uma Sinfonia de Paz se a MÇo que escreveu tudo isto tivesse parado no quinto dia da criaÚÇo. "Mas houve um sexto dia", disse o Sol. - VocË Ê sÂbio porque vË tudo Á dist×ncia - respondeu o rapaz. - Mas nÇo conhece o Amor. Se nÇo houvesse um sexto dia da criaÚÇo, nÇo haveria o homem, e o cobre seria sempre cobre, e o chumbo seria sempre chumbo. Cada um tem sua Lenda Pessoal, Ê verdade, mas um dia esta Lenda Pessoal ser cumprida. EntÇo Ê preciso transformar-se em algo melhor, e ter uma nova Lenda Pessoal, atÊ que a Alma do Mundo seja realmente uma coisa sÕ. O sol ficou pensativo e resolveu brilhar mais forte. O vento, que estava gostando da conversa, soprou tambÊm mais forte, para que o sol nÇo cegasse o rapaz. - Para isto existe a Alquimia - disse o rapaz. - Para que cada homem busque seu tesouro, e o encontre, e depois queira ser melhor do que foi na sua vida anterior. O chumbo cumprir seu papel atÊ que o mundo nÇo precise mais de chumbo; entÇo ele ter que transformar-se em ouro. "Os Alquimistas fazem isto. Mostram que, quando buscamos ser melhores do que somos, tudo em volta se torna melhor tambÊm". - E por que vocË diz que eu nÇo conheÚo o Amor? - perguntou o Sol. - Porque o amor nÇo Ê estar parado como o deserto, nem correr o mundo como o vento, nem ver tudo de longe, como vocË. O Amor Ê a forÚa que transforma e melhora a Alma do Mundo. Quando penetrei nela pela primeira vez, achei que fosse perfeita. Mas depois vi que ela era um reflexo de todas as criaturas, e tinha suas guerras e suas paixÈes. Somos nÕs que alimentamos a Alma do Mundo, e a terra onde vivemos ser melhor ou pior, se formos melhores ou piores. AÎ Ê que entra a forÚa do Amor, porque quando amamos, sempre desejamos ser melhores do que somos. - O que vocË quer de mim? - perguntou o Sol. - Que me ajude a transformar-me em vento - respondeu o rapaz. - A Natureza me conhece como a mais sÂbia de todas as criaturas - disse o Sol. - Mas nÇo sei como transformÂ-lo em vento. - Com quem devo falar, entÇo? Por um momento o sol ficou quieto. O vento estava ouvindo, e ia espalhar por todo o mundo que sua sabedoria era limitada. Entretanto, nÇo tinha jeito de fugir daquele rapaz, que falava a Linguagem do Mundo. - Converse com a MÇo que escreveu tudo - disse o Sol. O vento gritou de contentamento, e soprou com mais forÚa do que nunca. As tendas comeÚaram a ser arrancadas da areia, e os animais soltaram-se de suas rÊdeas. No rochedo, os homens se agarravam uns aos outros para nÇo serem atirados longe. O rapaz se virou entÇo para a MÇo que Tudo Havia Escrito. E ao invÊs de falar qualquer coisa, sentiu que o Universo ficava em silËncio, e ficou em silËncio tambÊm. Uma forÚa de Amor jorrou de seu coraÚÇo, e o rapaz comeÚo